Ao longo do curso, no final de cada sessão, cada um de nós escreveu num post-it uma expressão escolhida a partir das inúmeras que haviam sido escritas nessa sessão. O post-it era depois colado numa parede, que se foi, assim, revelando um “mural” de inspiração.
Na ultima sessão, cada um escolheu um post-it e, em 10 minutos, propôs-se desenvolver um texto a partir da frase: “Escreveu … (texto do post-it) num post-it, colou-o… (indicar onde o colou) e virou costas”. Incapaz de me decidir por um único post-it, optei por seleccionar três, os que abaixo reproduzo.
Frases escolhidas:
“Um papel em branco! Vou colori-lo, seja com lápis de cor, canetas de feltro, ou simplesmente com as minhas palavras”
“Há palavras feitas para mastigar as ideias”
“Dia 15, em Lisboa, o sol nasce às 06:39”
Texto:
Acordou estremunhada. Passaram alguns minutos antes que tomasse consciência de onde estava. Depois soube. Levantou-se, espreguiçando-se. Fez o primeiro gesto da manhã, de todas as manhãs: ligou o rádio. Foi dominada por uma música lastimável e fez-se a mesma pergunta de sempre: como é que um locutor se senta aos comandos de uma rádio e se predispõe a acordar um país de gente melancólica com acordes tão bizarros? Felizmente, uma voz melodiosa anunciou de imediato: “Bom dia, tenha um muito bom dia. Hoje, dia 15, em Lisboa o sol nasce às 06:39…”. Não ouviu mais nada. Meu Deus, que precisão: 06:39! Estes meteorologistas são doidos! Houvesse tanto rigor nas contas do Orçamento de Estado e talvez o locutor não estivesse agora anunciar a mais que previsível demissão do Ministro das Finanças.
Tomou o seu duche, lavou os dentes, não esqueceu o creme hidratante espalhado por todo o corpo com gestos a roçar o sensual, olhou-se uma última vez ao espelho, gostou do que viu e mudou a expressão, contemplando-se com um olhar aprovador.
Ia precisamente a sair de casa quando olhou distraída para o puff comprado na véspera e, à falta de uma decisão sobre onde iria ele morar lá em casa, abandonado no hall. Só então reparou que uma folha de papel havia ali sido esquecida.
“Um papel em branco! Vou colori-lo, seja com lápis de cor, canetas de feltro, ou simplesmente com as minhas palavras”. Se bem o pensou, melhor o escreveu num post-it, colou-o na porta de entrada pela parte de fora e virou costas. Esqueceu nesse instante o pequeno almoço já por três vezes marcado, adiado e remarcado com o C. e nem a ameaça que ele lhe havia feito da ultima vez, que não voltaria a esperá-la e iria embora de vez se ela repetisse a gracinha, nem isso a fez assentar a cabeça.
É que ela sabia que há palavras feitas para mastigar as ideias e, por isso, naquele dia 15 em que Lisboa acordaria com os primeiros raios de sol às 06:39, dirigiu-se apressadamente à Baixa da cidade para, de uma vez por todas, fazer o que vinha a adiar há uma eternidade: inscrever-se num curso de Escrita Criativa.
Nota:
Este texto foi escrito na última sessão do curso e traduz o meu desejo que tivesse sido a primeira. Aqui se pretende, também, reencontrar o C., que abandonou o grupo a meio do curso e de quem nunca mais soubemos nada.
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