quinta-feira, 31 de julho de 2008

A tua vida numa rifa



Iniciou-se a sessão rasgando papel. À mão, em pequenos fragmentos, sem qualquer preocupação de relevo que não fosse obter diversos exemplares de diferentes feitios. Depois, em cada pedaço foi escrita uma palavra, aquela que cada um entendeu que melhor definia o que o seu formato sugeria.

Conforme os diferentes efeitos, surgiram, entre outras:
- iate
- bilhete de autocarro
- bandeira;
- cabide;
- lua de papel
- gota d’água
- península Ibérica
- rifa

Saiu-se então para um pequeno passeio pedestre pela baixa da cidade, transportando no bolso um desses pedaços de papel. No destino, sob a azáfama de final de tarde na cidade e com o rio em fundo, em 10 minutos meditou-se sobre a ideia “quem és tu?”, e as reflexões foram anotadas em pequenas frases/interrogações.

O caminho de regresso foi feito com instruções precisas para escutar com atenção todos os sons em redor, registando-os e conjugando-os com “regressou…”

Fragmento de papel escolhido para viajar no bolso: uma rifa, devidamente enrolada, como as que se encontram nas quermesses das festas populares que ainda vai havendo nas aldeias.

De volta à sala, 10 minutos para escrever, relacionando “quem és tu?”, “regressou” e a palavra que espreita do bolso (rifa).

Texto:
No regresso, olhou a sua sombra. Fez a si mesma a pergunta que sempre a inquietava: quem era? Poderia saber quem era, apenas olhando a sua sombra?
Às vezes sentia-se um gigante, tão gigante que até se surpreendia. A sombra permitia-lhe o que o espelho lhe negava: o perfil. Perguntou-se para onde a levavam os seus passos naquele regresso. Sentia-se insegura, encurvada pela vida, mas ainda capaz do sonho. Capaz da vida. Que vida estaria contida na rifa que lhe coubera? E teria coragem de a desenrolar agora?
Em cada regresso perguntava-se se o sonho é companheiro do optimismo. Se tens garra porque não a agarras? Que te impede de voar?
Andou um pouco mais, sem saber se aquela necessidade de saltitar era mesmo real ou símbolo da sua inquietude.
Naquele regresso, uma sensação nova: a de olhar a imensidão e o silêncio do rio. Cruzou o arco e seguiu por caminhos proibidos. Descobriu uma agradável sensação ao experimentar emoções já vividas noutros regressos. A cada passo, o medo de cair, mas a certeza da música que ouvia dentro da sua cabeça dava-lhe confiança para continuar.
Não sabia se aquele regresso era igualmente uma ida, não tinha a certeza de estar a ir embora, mas ficar ali já não fazia sentido.
Com um último olhar para trás, e em passo acelerado e firme, tomou finalmente o caminho de regresso e rumou a oriente, porque sabia que de lá vinha o sol e lá saberia quem estava na ponta da sua sombra.
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