sexta-feira, 18 de junho de 2010

ADEUS SARAMAGO


"A princesa já não pensa nos homens que viu na estrada. Agora mesmo se lembrou de que, afinal, nunca foi a Mafra, que estranha coisa, constrói-se um convento porque nasceu Maria Bárbara, cumpre-se o voto porque Maria Bárbara nasceu, e Maria Bárbara não viu, não sabe (...). Ai as culpas de Maria Bárbara, o mal que já fez só porque nasceu (...). Senhora mãe e rainha minha, aqui estou eu indo para Espanha, donde não voltarei, em Mafra sei que se constrói um convento por causa de voto em que fui parte, e nunca ninguém de cá me levou a vê-lo, há nisto muita coisa que não sei entender, Minha filha e futura rainha, não retires ao tempo que deve ser de oração o tempo de vãos pensamentos, tais são esses, a real vontade de teu pai e senhor nosso quis que se levantasse o convento, a mesma real vontade quer que vás para Espanha e o convento não vejas, só a vontade de el-rei prevalece, o resto é nada, então é nada esta infanta que eu sou, nada os homens que vão além, nada este coche que nos leva, nada aquele oficial que ali vai à chuva e olha para mim, nada, Assim é, minha filha e quanto mais se for prolongando a tua vida, melhor verás que o mundo é como uma grande sombra que vai passando para dentro do nosso coração, por isso o mundo se torna vazio e o coração não resiste, oh, minha mãe, que é nascer, Nascer é morrer, Maria Bárbara."

In: O Memorial do Convento

domingo, 13 de junho de 2010

Sem palavras


Mote: Escrever um texto, na primeira pessoa, sobre o medo.

Meu amor,
Esta noite tive um pesadelo perverso. Sonhei que todas as palavras tinham desaparecido de repente, sem deixar rasto e como que por magia. Imaginas um mundo sem palavras?
Naturalmente, desapareceram também os livros, as revistas, deixou de haver notícias, a comunicação social evaporou-se. Nos sonhos acontecem uns fenómenos instantâneos que não sabemos explicar e foi o caso: saí para a rua e nos placards publicitários ou nos letreiros das lojas… nada, dizeres nenhuns. Nas tabuletas das ruas… não havia nada, carros e pessoas não sabiam para onde se dirigir. A comunicação entre as pessoas era uma autêntica babel. Sem palavras, tinham desaparecido as bibliotecas, as livrarias. Isto só para te dar alguns exemplos, claro.
Senti medo, muito medo. Que mundo triste nos esperava!
Tu conheces-me, tenho-me por razoável, para mim a palavra não é o alfa e o ómega de todas as coisas, mas, por momentos, no meu pesadelo assaltou-me um pensamento horrível: sem livros, que presentes teria para ti no futuro? Já viste do que me fui lembrar?
Acordei sobressaltado. Havia no ar o cheiro do medo. O medo cheira-se, sabes?
Olhei para o lado. Dormias serena e ver-te nessa fragilidade que mora em ti quando dormes, acalmou-me logo um pouco. Mesmo assim, saltei da cama e corri para a sala: tudo nos seus sítios, a ordem das coisas ainda existia. Prateleiras repletas de livros, papéis cheiinhos de frases amontoados por todo o lado, deixados ao abandono, como sempre os deixo à noite. O silêncio em cada palavra, em cada letra, em cada traço. O tempo não tinha passado por aqui. Os meus medos já não existiam.


Mote: Nuno
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