sexta-feira, 4 de fevereiro de 2011

Quem és hoje?


Mote: todos os elementos do Clube foram convidados a descrever o seu estilo de escrita.
Foi feito um sorteio para que cada um, assumindo o estilo de escrita do elemento do Clube que lhe coube em sorte, escrevesse um texto sobre Elevadores.
Calhou-me ser a Laurinda, que descreveu a sua escrita como sendo "difícil de acontecer; de sensações; de lugares (descrição); tenta ser verdadeira, real".

Era um elevador antigo, já um pouco entradote e vivia num prédio tão velho como ele. Estava um pouco farto daquela vida que levava. Tinha um emprego aborrecido, sempre a carregar desconhecidos para cima e para baixo. Ainda por cima mal agradecidos, ninguém dava verdadeiro valor à utilidade que ele representava nas suas vidas. Depois, eram as avarias constantes, os súbitos cortes de energia que o deixavam apreensivo, as molas e os carretos gastos, já um bocadinho enferrujados. Ansiava pela reforma do zelador do prédio, que não tratava da manutenção como ele merecia. Era uma maçada sentir tantas dores de cabeça provocadas pelo próprio ruído, sabendo que não podia evitá-las.
E depois, as pessoas estavam cada vez mais preguiçosas, já ninguém usava as escadas. Algumas eram muito pesadas e não respeitavam o limite de carga e lá ia ele a transpirar por ali fora, numa enervante chiadeira.
O desgaste não o impedia de ser uma máquina sonhadora: ansiava ser um elevador panorâmico, instalado num bonito ponto turístico, com uma linda vista. Apesar de não conhecer muito do mundo, ouvia as conversas das pessoas que transportava e sabia que esses sítios existiam. Transportaria pessoas requintadas, turistas endinheirados que lhe deixariam um agradável perfume na cabine. Seria chamado de “ascensor” e, quem sabe, teria um daqueles – como é que se diz? – ascensorista, que receberia pesadas gorjetas em troca do bom serviço que ele, ele sim, prestaria a tão ilustres viajantes. Seria inaugurado com pompa e circunstância, seria…
Estava nestes pensamentos, irrealistas, convenhamos, quando mais uma vez sentiu uma mão no puxador da porta exterior, afastando sem qualquer cuidado a porta interior de concertina (as pessoas eram tão descuidadas, meu Deus!) e, batendo ao fechá-la, carregou no botão do 5º andar. Respirou fundo, resmungou um pouco naquela linguagem que só os elevadores conhecem e lá foi ele, a ranger pelo prédio fora.

Mote: Pedro
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quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

Já nasceu

O melhor presente e a melhor mensagem de Natal que recebo todos os anos. Vem do Tio Escola.

segunda-feira, 16 de agosto de 2010

Para ti, no teu dia


Sub-título 1: Ele e Ela
Sub-título 2: De como o absurdo pode dar sentido à vida

Conheceram-se num computador, no final de um mês de Março de um ano que já passou. Ele meteu-se com ela e ela retorquiu, um pouco desconfiada a princípio. Tão desconfiada que só muito lentamente o deixou invadir a sua vida.

Devagarinho, foram-se aproximando. Descobrindo. Encontraram-se uma e outra e outra vez, em inúmeras seduções do corpo e da alma.

“Devagar vamos começando uma relação que vai crescendo. Vou descobrindo uma mulher de uma riqueza interior notável. Uma mulher sensível, estimulante, viva. Uma mulher que "mexe" comigo.”

Viviam longe um do outro. Muitos quilómetros geográficos os separavam, mas a ela parecia-lhe que estavam à distância do pensamento. Ela acalentava o sonho de um dia poder vencer a distância física e acreditou sempre que um dia iria conhecê-lo, ver a luz dos olhos dele (às vezes, ela é muito ingénua).

Ele ocupava os seus dias numa sociedade financeira, ela às voltas com papéis num trabalho banal, sem história. Ele com os seus números, ela com as suas letras. Ele, um profissional de sucesso. Ela, uma pessoa comum.

Ela questiona-se muitas vezes como é que duas pessoas tão diferentes, de mundos tão opostos, criaram uma tão grande cumplicidade num computador, essa máquina que é a lavoura da época deles, e com ele aprendeu como o mais improvável absurdo pode dar sentido à vida. Ela continua ainda hoje a procurar um sentido para aquele encontro.

“Às vezes surpreende-nos o que nos separa e no entanto é tão mais surpreendente o que nos une uns aos outros.”

Trocaram fotografias e ficaram a conhecer-se. Ele seduziu-a com os seus olhos marotos e as suas covinhas no rosto, que a encantaram. Ela, com os seus kissables lips, embora não soubesse o que isso era.

Durante muito tempo, o mundo dela foi aquele computador. Ele escrevia-lhe com pena de poeta. Ela, obsessiva e perfeccionista, gostava do pormenor, ganhou fama de ser cinzenta e levou-o várias vezes a pedir-lhe que relaxasse e deixasse fluir a vida. Ela pergunta-se se, nessas ocasiões, ele estava a falar consigo próprio. Ele, que valorizava a vida, cada minuto de vida. Ela, ávida de vida.

“As pessoas não valorizam o dia a dia. Eu valorizo.”

Ele dizia que ela era perspicaz (talvez fosse) e se calhar era por isso que se retraía e recolhia à concha de cada vez que ela chegava perto de um ponto sensível dele.

Ele queria fazer mais pela vida dele e dos outros, ir mais longe, voar mais alto, desinstalar-se e fê-la ver o mundo com outros olhos.

“Acho que gostava que as pessoas me lembrassem como um homem bom. Tocar a vida das pessoas de maneira positiva.”

Ele um inconformado (inconformista?). Ela uma deslumbrada (deslumbrante?).

Comboios, helicópteros, motos, tudo foi pretexto para conversas soltas. Falaram de livros lidos e músicas escutadas. Falaram de frustrações, de inquietações, de vivências, de expectativas, de surpresas, desafios e fantasias. De sonhos. Sonharam. Viveram. E sonhar foi também viver.

Juntos recordaram passados, memórias, tempos idos. E falaram do presente e, com isso e por isso, sentiram-se vivos. E projectaram futuros. Desassossegaram-se. Mas os dois sabem que grande parte das vezes em que conversavam um com o outro não estavam a fazer mais do que a falar para si mesmos.

Ele chamou-lhe génio, logo ele, que ela considerava sábio, e um dia disse-lhe que ela era inesquecível, inexplicável, incomparável. Ela acreditou (às vezes, ela é muito ingénua), mas não percebeu que aqueles três in só queriam dizer que afinal ela já estava out da vida dele.

Ela seguiu o caminho dela, novos rostos repovoaram a sua vida, que ganhou novas cores, novas formas, novos significados. Outro tanto terá acontecido com a vida dele. Às vezes ainda se encontram, mas já não se falam. Ela pergunta-se muitas vezes se ele a esqueceu e porquê. Ela nunca o esqueceu.

Mas nela ficou sempre a mágoa. De nada mais ter sabido dele. De não ter podido acompanhar-lhe o percurso, os sonhos, os projectos. Mas ela nunca mais soube. Nela ficou a mágoa.

A vida também se mede pelas marcas que deixamos nos outros e que os outros deixam em nós. É a ausência destas marcas que nos deixam uma sensação de vazio muitas vezes difícil de suportar.”

Hoje é o aniversário dele. Ele disse-lhe que não dava importância a datas, mas ela tinha a mania das datas e queria assinalar o dia de hoje e oferecer-lhe um presente, mas não sabia o quê. Então pensou que para ele nada mais poderia ter do que palavras. As palavras, essas marotas que foram sempre o elo de ligação entre eles, por poderem expressar sentimentos, sensibilidades, emoções. Ela nada mais poderia fazer do que dedicar-lhe palavras. Estas. E dedicou-lhas.

Ela queria dizer-lhe que gostava que ele fosse muito feliz, mas sabe que uma felicidade tão plena como a que ela quer para ele não existe. Às vezes, felicidade não é mais do que sabermos que, algures, alguém foi parte do nosso caminho e adoçou a nossa vida.
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sábado, 10 de julho de 2010

Mistérios...


Mote: Descrever uma cena do quotidiano de uma personalidade conhecida do cinema, da televisão ou cartoon, de forma a percebermos de quem se trata.

Meu amor,
Não olhes agora. Eu sei o quanto gostas dele, sei dessa admiração que lhe tens. Nos romances, nas crónicas, nas cartas que escreveu à mulher quando, com a guerra, lhe pediam para fazer a paz, sei como te revês naquela escrita profunda que ele parece arrancar das entranhas. Compreendo-te. Caramba, o homem consegue revirar-nos do avesso. Então eu não me lembro de quantas vezes perguntámos um ao outro “mas como é que ele consegue?”, depois de mergulharmos em mais uma das suas crónicas? O homem arranca-nos por dentro!
Mas não olhes agora, não o perturbes hoje. Vê como está cansado. Eu sei que trazes contigo o último livro dele e contavas levar um autógrafo. Mas isso era ali em baixo, no stand que a editora dele tem ali na Feira e onde ele esperou toda a tarde pelos seus leitores, com aquele ar distante e até irritado, como se o mundo o aborrecesse. Agora, que terminou, se veio aqui ao bar, foi certamente para descansar. Olha, tal como nós fizemos esta pausa antes de nos lançarmos de novo ao Parque, serpenteando entre stands.
Repara como está debilitado desde que foi surpreendido pela doença. Para um indivíduo reservado como ele, tornar público um cancro deve ter exigido coragem, não achas? E olha que mesmo com este ar abatido não deixou de vir. Dizem-no irascível, mas mostrou consideração pelos leitores.
Vá, deixa-o lá, o teu autógrafo pode esperar por outra ocasião. Não o perturbes agora.

Personalidade pública: António Lobo Antunes

Mote: Nuno
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sexta-feira, 18 de junho de 2010

ADEUS SARAMAGO


"A princesa já não pensa nos homens que viu na estrada. Agora mesmo se lembrou de que, afinal, nunca foi a Mafra, que estranha coisa, constrói-se um convento porque nasceu Maria Bárbara, cumpre-se o voto porque Maria Bárbara nasceu, e Maria Bárbara não viu, não sabe (...). Ai as culpas de Maria Bárbara, o mal que já fez só porque nasceu (...). Senhora mãe e rainha minha, aqui estou eu indo para Espanha, donde não voltarei, em Mafra sei que se constrói um convento por causa de voto em que fui parte, e nunca ninguém de cá me levou a vê-lo, há nisto muita coisa que não sei entender, Minha filha e futura rainha, não retires ao tempo que deve ser de oração o tempo de vãos pensamentos, tais são esses, a real vontade de teu pai e senhor nosso quis que se levantasse o convento, a mesma real vontade quer que vás para Espanha e o convento não vejas, só a vontade de el-rei prevalece, o resto é nada, então é nada esta infanta que eu sou, nada os homens que vão além, nada este coche que nos leva, nada aquele oficial que ali vai à chuva e olha para mim, nada, Assim é, minha filha e quanto mais se for prolongando a tua vida, melhor verás que o mundo é como uma grande sombra que vai passando para dentro do nosso coração, por isso o mundo se torna vazio e o coração não resiste, oh, minha mãe, que é nascer, Nascer é morrer, Maria Bárbara."

In: O Memorial do Convento

domingo, 13 de junho de 2010

Sem palavras


Mote: Escrever um texto, na primeira pessoa, sobre o medo.

Meu amor,
Esta noite tive um pesadelo perverso. Sonhei que todas as palavras tinham desaparecido de repente, sem deixar rasto e como que por magia. Imaginas um mundo sem palavras?
Naturalmente, desapareceram também os livros, as revistas, deixou de haver notícias, a comunicação social evaporou-se. Nos sonhos acontecem uns fenómenos instantâneos que não sabemos explicar e foi o caso: saí para a rua e nos placards publicitários ou nos letreiros das lojas… nada, dizeres nenhuns. Nas tabuletas das ruas… não havia nada, carros e pessoas não sabiam para onde se dirigir. A comunicação entre as pessoas era uma autêntica babel. Sem palavras, tinham desaparecido as bibliotecas, as livrarias. Isto só para te dar alguns exemplos, claro.
Senti medo, muito medo. Que mundo triste nos esperava!
Tu conheces-me, tenho-me por razoável, para mim a palavra não é o alfa e o ómega de todas as coisas, mas, por momentos, no meu pesadelo assaltou-me um pensamento horrível: sem livros, que presentes teria para ti no futuro? Já viste do que me fui lembrar?
Acordei sobressaltado. Havia no ar o cheiro do medo. O medo cheira-se, sabes?
Olhei para o lado. Dormias serena e ver-te nessa fragilidade que mora em ti quando dormes, acalmou-me logo um pouco. Mesmo assim, saltei da cama e corri para a sala: tudo nos seus sítios, a ordem das coisas ainda existia. Prateleiras repletas de livros, papéis cheiinhos de frases amontoados por todo o lado, deixados ao abandono, como sempre os deixo à noite. O silêncio em cada palavra, em cada letra, em cada traço. O tempo não tinha passado por aqui. Os meus medos já não existiam.


Mote: Nuno
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quinta-feira, 27 de maio de 2010

Redundante


Mote: fazer um texto que passe a ideia de «Redondo». Mas atenção: este exercício terá palavras proibidas. Não se podem usar as palavras «círculo, roda, circunferência e bola» e os verbos «girar, rodar e rodear».

Meu amor,
Vou partir por esse mundo. Dar a volta ao mundo. Estou decidido. Dizem que o mundo é redondo, parece-se assim com uma laranja, não é? Pois eu vou! Queres vir comigo?
Estou farto desta vida de rectas, de pessoas quadradas, não suporto o meu mundinho triangular, os dias de ondas que rebentam sempre iguais. Não voltarei a perder o meu tempo com pescadinhas de rabo na boca, rotundas que se fecham sobre si mesmas e não levam a lado nenhum. Quero mais. Posso mais.
Parto hoje mesmo, estou entusiasmado! Queres vir comigo? Vou no sentido oposto ao das voltas que a terra dá, quero ver se é verdade isso de a terra rodopiar sobre si mesma. Mas se for, vencê-la-ei. Irei contra a sua rota. Sei que não enfrentarei becos e recantos, afinal ela é redonda, não é? E chegarei ao ponto de partida depois de vencidos os socalcos da casca da laranja.
Não quero que penses, no entanto, que recuso as curvas da vida. Não é isso. Somente não quero mais os previsíveis circuitos que todos os dias espreitam a minha rotina. Aliás, rotina nunca mais. Já viste palavra mais rotunda? Faz lembrar um relógio de ponteiros eternos, aprisionados num mostrador de vidro baço.
Meu amor, estou de partida, vou dar a volta ao mundo. Queres vir comigo?

Mote de: Nuno
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sexta-feira, 23 de abril de 2010

Que efeito tem o amor em ti?

Mote: escrever um texto sobre o efeito do amor (ou do amor de alguém) em nós.

Meu amor,
Espero-te. O aeroporto está, a esta hora, efervescente, como em todas as horas. Vejo multidões de pessoas que se movimentam apressadamente diante dos meus olhos. Assisto à azáfama de passos acelerados. Todos parecem saber exactamente o que fazer, para onde ir.
Eu não. Sinto-me dispersa desde que foste para essa ilha perdida no Atlântico. Dizes-me que é muito bela, tem um café famoso, uma marina onde chegam embarcações do mundo inteiro, grandes crateras herança de vulcões extintos, uma natureza verdejante, pujante. É bonita, dizes-me. Para mim, não passa de um pedaço de terra cercado de água por todos os lados. Voltas hoje e ainda bem. Quero-te aqui, fazes-me falta.
Ouço vozes sedutoras que anunciam voos internacionais em várias línguas. Como não te anunciam a ti, a mim não me seduzem. Vejo painéis luminosos, letrinhas e números prometedores dos aviões que vão chegar, que vão partir. Recordo o dia em que partiste.
Observo pessoas que correm apressadas, talvez pessoas importantes com motivos importantes para partirem, para chegarem.
Do painel, vem agora a má notícia que nem as vozes sedutoras se atreveram ainda a anunciar: o teu voo foi cancelado. Há mau tempo na ilha. Penso em ti, perdido no Atlântico, cercado de água por todos os lados. Não saio daqui, vou esperar-te. Tenho saudades de estar cercada de amor por todos os lados.

Mote de: Nuno.
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segunda-feira, 22 de março de 2010

De pecado


Mote: sorteado um pecado capital a cada elemento do grupo (aproveitando a coincidência de sermos em número de 7), escrever um texto sobre o pecado que coube em sorte.

Meu amor,
Hoje voltei lá. Digo-o sem vaidade, aliás não é coisa de que me orgulhe.
Como sabes, ela sempre me acompanhou. Desde pequenino. A minha mãe atafulhava-me. A minha avó via-me anafado e logo exclamava, cheia de orgulho: «está com tão boas cores!». Até nas mãos do meu avô paterno, sempre tão avarento, havia sempre uma moeda para mais uma guloseima. Hoje, quando penso no efeito de tudo aquilo, sinto uma ira imensa. Não deles, coitados, para eles era uma segurança. A minha raiva é de mim mesmo, por não conseguir controlar-me. Na verdade, foi sempre ela que controlou a minha vida. Não sei se por preguiça da minha parte, se por fraca força de vontade. Nunca resisti, nunca quis resistir, anseio por aquele prazer, é como uma orgia, há nisto um toque de luxúria.
No fim, resta-me a frustração e outros sentimentos menos nobres. Não imaginas a inveja que sinto de ti quando te olho na tua magnífica elegância.
Mas, dizia eu, hoje voltei lá. Na aproximação ao prédio, o friozinho do costume ao encarar a placa por cima da porta: «Gulosos Compulsivo Anónimos». É intimidante, sabes? e é preciso coragem. Entrei e juntei-me às outras pessoas que já estavam sentadas em cadeiras dispostas em círculo. Conheço as histórias de alguns daqueles rostos e senti pena de um ou outro, porque lhes pressenti a culpa. Quando chegou a minha vez, elevei a voz e pronunciei com determinação: «Eu alimento-me de forma compulsiva, mas há exactamente 18 dias que não cedo à tentação».

Pecado que me coube em sorte: a Gula

Mote: Pedro
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sexta-feira, 19 de março de 2010

Com palavras de lá


Mote: escrever um texto com palavras de terminologia brasileira, proposta pelo Luis. Após pesquisa, foi possivel descobrir os seus significados, que indico à frente de cada uma: «bochinho» (um tipo irritadiço), «brasina» (não encontrei o significado, mas descobri que há uma village na Croácia com este nome), «Xirú», «capincho» (bicho, tipo capivara), «temporona» (fora de tempo, fora de época). Incluí, ainda, «barbada» (algo fácil), na sequência de um comentário da Leila.

«Xirú, tem aqui sua nova assistente. O espectáculo é logo mais à noite, o melhor é ensaiarem agora um pouco».
Xirú Bananaeira respirou fundo e olhou mais uma vez para a rapariga. Não percebia porque razão o seu agente tinha contratado aquela moça temporona. Tudo o que nela pudesse prometer parecia já ter acontecido. Se ao menos ela soubesse dançar, estava disposto a esquecer os anos a mais que ela aparentava, os quilitos que não disfarçava e o palmo de cara que lhe faltava.
Longe iam os tempos em que ensinar estas raparigas era barbada e lhe dava um tremendo gozo. Agora, tudo o que elas conseguiam era trazer de volta a lembrança de Conchita Consuelo e da semana que tinham passado em Brasina, esquecidos da vida. Lá, na Croácia, naquela village distante do mundo, tinham sido felizes. Mas, enfim, o seu agente descobrira que ela era casada com o empresário do espectáculo e não admitira que uma paixoneta interferisse com o esforço e suor de meses de trabalho. Em pouco tempo, tinha feito Conchita desaparecer e, com ela, toda a sua esperança num futuro longe dos palcos, lugar onde sentia não pertencer.
Desde aquele dia ganhou fama de bochinho e agora ainda tinha que ensinar aquela flausina a dançar ao som da concertina. Que decadência, meu Deus, que figuras era obrigado a fazer.
Bom, e se queria despachar-se, talvez fosse melhor começar, ajudando a rapariga a descer da cadeira. Nunca entendera aquela fixação feminina de pular para cima de mesas e cadeiras sempre que se deparavam com capinchos, que ainda por cima eram bichos tão inofensivos.

Mote: Luis
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domingo, 17 de janeiro de 2010

Como se antigamente



Mote: usar as palavras que se seguem, pela ordem em que se apresentam, num texto com não mais do que 10 linhas: carvão; lombriga; gesticular; preguiça; vereda

Agarrou na pá e atirou mais uma pazada de carvão para a caldeira da locomotiva, numa cadência interminável. Amaldiçoou mais uma vez o dia em que nasceu. Oh, ainda se pudesse ter aguardado umas gerações e nascer lá mais para o futuro, talvez lhe calhasse a era do TGV. Mas ali, naquele emprego sujo e duro, todos os males aconteciam, todas as doenças se apanhavam. Até uma lombriga o andava a incomodar há uns dias. Atravessando os carris, passou para o outro lado da linha, onde havia uma retrete. Estava ocupada e, pelo fedor, ia demorar. Arreliado, ficou por ali a gesticular, cheio de preguiça, tão mandrião que nem se lembrou de ir até ao fundo da vereda, onde poderia aliviar-se dos seus embaraços.

Mote: Graça
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sexta-feira, 30 de outubro de 2009

Porque corres?

Mote: um texto com as palavras: gavião; passe-vite; hortelã; triciclo; cobertor
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Lá vai Luísa a correr. Corre Luísa, corre, ainda tanto p’ra cumprir hoje! Esperam-te os filhos no infantário, saíste à pressa do escritório, não podes atrasar-te, telefonou-te o teu marido, tens que ir buscá-los outra vez, depois o supermercado, os trabalhos de casa, um salto a casa da tua idosa sogra, “precisa de alguma coisa, minha mãe”?
Corre, Luísa, corre, não pares para respirar, olha o jantar, espera-te a família, tens tudo pronto? Assaste ontem a carne no forno, temperada com hortelã, põe agora a panela ao lume, coze as batatas, pega no passe-vite, um bocado de manteiga e leite e já tens o puré feito, olha o mais pequeno, não come nada que se veja, mais uma noite de barriga vazia, dá-lhe papa antes de dormir.
Corre, Luísa, corre a deitar os teus filhos, os dentes já lavados, um beijo no pai, olha o cobertor a cair, aconchega-lhes o cobertor, ou vão ter frio toda a noite, conta-lhes uma história, apaga a luz, que já dormem, sai do quarto, cuidado, não tropeces no triciclo que o do meio não arrumou, não faças barulho.
Vai, Luísa, vai, o teu marido precisa de ti, cuida que nada lhe falte, entretém-se com as colecções, deixou cair um selo raro, tem um gavião, apanha-o Luísa, ajuda o teu marido, faz-lhe companhia, olha a televisão, estás cansada, cuidado não bocejes, vai cuidar que o aborreces, esse silêncio vai pesar, vai mas é deitar-te, um beijo rápido e cais na cama, porque amanhã, Luísa… amanhã tudo outra vez, filhos, infantário, trabalho, jantar, marido, cobertor, triciclo, hortelã, passe-vite, gavião

Mote de: Nuno
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sexta-feira, 23 de outubro de 2009

Um frio na alma


Mote: escrever um texto que expresse o conceito de «frio»

Era Janeiro. Nevava lá fora.
Pascoal não teve dúvidas quando entrou no quarto gelado. Tinha hesitado muito até tomar a decisão, mas agora sentia-se firme.
Estava magoado. Deixara-se surpreender pela cilada de Clementina na única ocasião em que lhe tinha pedido apoio. Tinha sido a gota de água. A poucos dias da inauguração, o Hotel do Gelo, o seu sonho, ruíra por causa dela.
Um hotel todo em gelo… paredes, móveis, lustres, soberbas obras de artes esculpidas em gelo, tudo exibido ao longo de magníficos salões… Um autentico castelo de cristal. Obtido a partir de largas toneladas de neve e gelo, harmoniosamente combinados, seria a admiração de todos os que dele viessem a ter conhecimento. Pascoal fantasiara com detalhe o estrondoso acontecimento que seria a inauguração: glória, poder e sucesso, holofotes acesos em elogios ao seu arrojo. Por todo o lado, convidados deslumbrados com a sua iniciativa.
Tudo. Agora nada. Por causa dela.
Clementina, arremessando-lhe toda a crueldade que ele tão bem conhecia, arrasara todo o projecto. A venda das acções, que ela lhe prometera, e que ele havia descoberto terem sido cedidas ao seu rival Isolino, desvanecera definitivamente a concretização do seu sonho. A discussão que se seguira tinha sido especialmente dura, com ela a acusá-lo de falta de originalidade e de visão de longo prazo, já que o aquecimento global deitaria por terra todo o investimento. “Por terra, não” - acrescentara cinicamente, “por água abaixo”.
A ideia não era nova, ele bem o sabia, mas ali, na Antárctida, tinha todas as condições para ser um sucesso. E o outro argumento também não convencia, já que aquele era um projecto sazonal, que teria que ser reconstruído no início de cada estação fria.
Era Janeiro. Nevava lá fora.
Entrou no quarto. Ela dormia, tão serena que poderíamos pensar que se julgava inocente. Pascoal colocou uma asa sobre a cabeça dela, tapando-lhe o bico, e pressionou com força até deixar de a ouvir respirar, até ter a certeza de que ela nunca mais poderia prejudicá-lo.
Lá fora, era Janeiro e continuava a nevar.
A nossa história poderia ser uma banal crónica de crime e vingança, não fosse sabermos que Pascoal e Clementina são dois pinguins.
Mote de: Nuno
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domingo, 27 de setembro de 2009

Onde se inventam palavras


Mote; Escrever um texto que inclua as palavras inventadas: renaida, golfrénica, clibopisto, asdionte e comerjélio

Asdionte era um lugar triste, de gente lúgubre, terra onde nunca um sorriso saiu à rua. Nele habitava um povo que, embora trabalhador, sofria de síndrome melancólica e palavras tão essenciais como animação, festa ou folia eram estranhas para eles. Ali nada acontecia e se alguém perguntava por notícias, ouvia por resposta:
- Nada de novo. Notícias, só «asdionte».
Talvez viesse dali o estranho nome daquele povoado.
Naturalmente, a chegada de Renaida àquele inóspito lugar provocou um enorme tumulto. Dizia-se que era golfrénica, mas ninguém sabia ao certo o que isso significava. Uns diziam que era apelido de família, outros que era um traço da sua frenética personalidade. Certo, certo é que Comerjélio nunca mais tirou os olhos dela. Foi uma paixão fulminante, daquelas que aquecem o coração e dão sentido à vida. Ela era uma rapariga alegre e risonha, cheia de vivacidade, dir-se-ia que nem se encaixava naquela aldeia. Comerjélio encantou-se com a simplicidade de quem parecia ter trazido o sol que ele nunca tinha visto em Asdionte.
Quem não achou graça nenhuma à paixoneta foi a mãe dele. Aquilo não era rapariga para o seu filho, queria alguma mais atinada e defendia-se dizendo que ninguém sabia de onde ela tinha vindo e porque tinha ficado por ali. Achava que o filho só não via o que a ela soava tão óbvio porque era demasiado despistado, aliás, com alguma ternura costumava até chamar-lhe «o meu pequeno Clibopisto».
Mas Renaida tinha vindo para ficar. Impressionada com a tristeza que encontrou naquele lugar, resolveu dedicar-se a ensinar à população o poder da alegria e abriu a «Escola de Sorrisos» sob o lema «Yes, we can», convicta de que conseguiriam mudar a face da aldeia. O slogan viria mais tarde a ser roubado por uma campanha política de sucesso, mas disso não damos conta aqui. Começou por ensinar o «Hino à Alegria» e após algumas lições de música, já toda a aldeia se tinha rendido àquela rapariga estranha e delirante. Ao fim de algum tempo, até a velha senhora se dobrou aos encantos daquela por quem o seu filho se tinha apaixonado.
Hoje, Renaida e Comerjélio são o par mais feliz de Asdionte e o seu amor desdobrou-se em dois lindos rebentos, a quem, em homenagem à avó, puseram os nomes «Clibo» e «Pisto».

Mote de: Nuno

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terça-feira, 25 de agosto de 2009

Sabes inventar palavras?

Mote: Escrever um texto com as seguintes palavras inventadas: sidrembo; xinovita; bacomela; mergonha; alávica.

Viu-a encará-la com um desprezo que não disfarçou, mas isso não a fez fraquejar. Era assim desde sempre: não se toleravam, mas sabia que desafiá-la poderia revelar-se pouco inteligente.
- Menina Clarinha, venha ao quadro.
Não era a primeira vez que se confrontavam e reconhecia que nem sempre a vitória fora sua, mas o lápis da sorte que trazia hoje consigo fê-la sentir-se confiante. Sabia que podia desconcertá-la.
Avançou com determinação e segurou no giz. Empinou o nariz e esperou, olhos nos olhos com a professora.
- Transcreva daqui uma frase, que seguidamente deverá analisar.
A professora entregou-lhe a obra que tinham vindo a estudar durante toda a semana. Tinha chegado o momento. Abriu o livro casualmente e, tão lentamente quanto pôde, começou a desenhar palavras numa caligrafia perfeita.
“Bacomela sidrembou sem qualquer mergonha, pois sentia-se alávica com toda aquela xinovita”
Quando terminou de escrever, olhou de soslaio para a D. Palmira. Não havia lugar à dúvida: tinha deixado a velha senhora atónita. Interiormente, festejou o seu triunfo. A balbuciar, a professora conseguiu, ainda assim, pronunciar:
- Como classifica …hã… Bacomela?
- É o sujeito da frase.
- E… sidrembou?
- Trata-se do pretérito perfeito do verbo sidrembo na 3ª pessoa do singular. Posso conjugá-lo, se pretender: eu sidrembo, tu sidrembras, ele…
D. Palmira não parecia estar a sentir-se bem. A sua voz soou tremida:
- Não, não, chega. Deixe estar. Tem a certeza que retirou essa frase do livro?
Clarinha fez o ar mais estupefacto que conseguiu.
- Claro que sim. Posso continuar a minha análise?
- Continue… continue… Não! Espere. Diga-me só onde encontrou essas palavras… mergonha… alávica… xinovita.
Ela manteve o ar inocente.
- Essa agora! Estão no texto. Como bem sabe, mergonha é um advérbio, alávica um adjectivo e xinovita um substantivo.
Deixando toda a turma em êxtase, D. Palmira saiu a correr da sala e continuou pelo corredor fora a gritar:
- Socorro! Tragam-me um dicionário de neologismos!

Mote de: Nuno
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segunda-feira, 10 de agosto de 2009

De que tens medo?


Mote: escrever um texto que contenha a expressão «Medo? Não. Alguma inquietude, mas mesmo assim controlada»

São tantos os medos que nos acompanham ao longo do caminho que nos perdemos por não saber dizê-los.
Há o medo de não ser capaz. O medo de falar, talvez por medo de me ouvir. O medo das coisas que nos fazem sentir bem, como se delas não fossemos dignos.
O medo de não conseguir escrever um livro. O medo de não ser criativo. Medo de não parecer bem. Medo dos pequenos ridículos.
Há medos inconscientes, outros que tão bem conhecemos. Medos profundos, outros superficiais, outros irracionais.
Há medos de aranhas, de ratos, de alturas, da dor, do escuro, de andar de avião, da cadeira do dentista, de engordar, de multidões. Ansiedades ou fobias. De objectos, animais, lugares, situações.
Medo da solidão. Do desconhecido. Medo de ter medo.
O medo de partir, mesmo quando há não vontade de ficar.
O medo da verdade, por medo de sofrer, de chorar e, o pior de todos, o medo de sorrir.
Há o medo da vida, o medo de mim, o medo das coisas que me assustam. Medo de enfrentar.
O medo de magoar e ser magoado. Medo de amar. De não ser amado.
O medo da primeira vez (de qualquer primeira vez, mas há umas que custam mais do que outras). O medo do fim vida (ou de qualquer fim).
No limite, todos os medos caminham na mesma direcção: o medo da morte, que faz ter medo da vida. Ou, pelo menos, não deixa que a vida seja vivida com vida.
Quanto a vós, poderão pensar que também eu senti medo de caneta em punho para vos escrever estas linhas. Pois a todos responderei: Medo? Não. Alguma inquietude, mas mesmo assim controlada.

Mote de: Nuno
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quarta-feira, 5 de agosto de 2009

(A)rriscado


Mote: escrever um texto às riscas (não interessa como, a única regra é causar no receptor a sensação de riscas).

Há um frio cortante por toda a casa. Tento uns rabiscos no papel, mas as mãos geladas deixam-me desconfortável e impedem-me de escrever. Ouço a chuva lá fora e corro para a janela. Afasto as ripas dos estores e olho a linha do horizonte. Nuvens pesadas entornam uma generosa queda de água em forma de grossas riscas que desabam num corrupio de movimentos verticais.
Arrisco e saio para a rua. A água escorre pela estrada numa correria louca pelo imenso traçado desenhado no asfalto. Há anos que sigo à risca os sábios conselhos da minha avó e evito a humidade para não pôr em risco a minha frágil saúde, mas hoje apetece-me esta chuva. Deixo as linhas formadas pela água escorrerem-me pelas roupas finas coladas ao corpo. Troco o risco de uma gripe pelo prazer de uma carícia molhada.
O vento sopra forte e trás consigo uma pedra que voa em direcção a um carro ali estacionado, riscando-lhe o vidro. A montra de uma loja fica riscada quando um ciclista desgovernado falha o indispensável equilíbrio.
Volto para casa, viro a cabeça a pino e com o pente vou moldando riscos nos cabelos encharcados, devolvendo-lhes a ordem. Passo pela sala. Na televisão, um programa sobre a vida animal revela-me segredos sobre o mundo das zebras. Sigo para a cozinha, quero um café quentinho para me aquecer, abro o armário e tiro uma chávena do meu novo serviço às riscas amarelas. Reparo no esparguete do almoço esquecido em cima da mesa, o frio deixou-me sem fome.
Volto à sala, e, num impulso, desato a riscar tudo o que escrevi. Depois, escrevo mais uma página do meu novo livro “A vida é um risco”.

Mote de: Nuno
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quinta-feira, 30 de julho de 2009

Inha, inha...


Mote: escrever um texto que inclua as palavras: alface, chatice, aspirinas, inversão, contenda.

Uma vontadinha andava aflitinha por comer uma saladinha. Alface, pensou, alface para uma alfacinha seria a melhor opçãozinha. Umas folhinhas de alface numa tigelinha, um fiozinho de um bom azeitinho e em poucos minutinhos faria um bom almocinho. Que chatice, não ter ali à mão a dita verdurinha. Não fosse a contenda, uma briguinha sem importância, que mantinha há anos com o dono da lojinha ao fundo da sua casinha, e a esta hora já estaria a caminho.
Não faz mal, resolveu a nossa vontadinha. Se o fulaninho me tratar mal, passo na farmácia do Sr. Agostinho e compro um remediozinho, quem sabe umas aspirinas ou um analgesicozinho.
Pegou no carrinho, fez inversão no caminho e foi à vidinha, cuidar da sua fominha.

Mote de: Nuno

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segunda-feira, 27 de julho de 2009

Um salto até ao céu


Mote: escrever um texto iniciado por: "Naquele dia, saltei por cima da minha sombra."

Naquele dia, saltei por cima da minha sombra. Foi um dia feliz. Calcei os meus sapatos voadores e galguei por cima de árvores e de pássaros, de aviões e arranha-céus que pareciam tocar a eternidade.
Continuei para lá das nuvens, estendi os braços e senti as gotas da chuva por entre os dedos.
Sem parar, alcancei os raios do sol e vi aquecer em mim a coragem de voar cada vez mais alto.
Enfrentei obstáculos cruéis, mas fui mais forte e nada me deteve.
Não quis ouvir os que me agouravam uma queda fatal e fui mais além, em busca do meu lugar, ao lugar onde sempre vamos quando procuramos um sonho.
Nesse dia, fui maior do que as maiores montanhas que encontrei no mundo. A minha sombra perseguia-me, acompanhava-me nos meus saltos de gigante, mas aquela era uma corrida que ela não poderia vencer, porque me animava uma grande voragem, eu queria chegar mais longe do que a minha própria vontade.
Nesse dia, saltei por cima da minha sombra e cheguei ao céu.

Mote de: Graça

terça-feira, 7 de julho de 2009

E tu? Onde o encontraste?


Mote: escrever um texto iniciado por: "Acho que ele foi encontrado no caixote do lixo..."
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Acho que ele foi encontrado no caixote do lixo. Não que isso fizesse grande diferença. Para mim era precioso. O importante era como tinha vindo até mim. Era exactamente como eu o imaginava. Como eu sempre o tinha fantasiado, desde que era apenas uma miúda e ele povoava os meus sonhos mais inconfessáveis. Esta noite ele seria meu. Sabia que no momento em que ele tocasse o meu dedo, o menos importante seria o lugar de onde ele tinha vindo. Esta noite o brilho daquele anel de noivado faria iluminar o meu coração.

Mote de: Nuno
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sexta-feira, 3 de julho de 2009

Qual é a tua cor hoje? (II)


Mote - Um texto iniciado por: "Quando ela pintou o cabelo de verde..."

Quando ela pintou o cabelo de verde, a sogra pensou que desta vez é que ela tinha enlouquecido! Aquilo já era de mais! É certo que naquele cabelo já tinha visto praticamente todas as cores que alguma vez julgara poder ver numa cabeça, aliás até já diversos tons esverdeados tinham acampado por ali mais vezes do que considerava aceitável, mas desta vez…

Estava sobejamente habituada às extravagâncias da rapariga e não gostava de recordar a única vez que a tinha acompanhado às compras. Ainda hoje se perguntava onde tinha ela descoberto aquela loja e arrepiava-se com a familiaridade com que a viu tratar as funcionárias e os restantes frequentadores do sítio. Era habitual ver-lhe nos pés umas coisas a que só uma alma benevolente chamaria calçado e as unhas já tinham passado por todos os processos de transformação e coloração possíveis. Tons claros e escuros, suaves ou garridos, tudo era opção para os artefactos que cobriam aquele corpo (quase sempre muito pouco…) desde que o resultado fosse notoriamente bizarro. Até sobre a depilação nas zonas íntimas já tinha ouvido umas histórias, mas nunca pensou que a rapariga tivesse o descaramento de colorir o cabelo de verde-alface.

Nem queria pensar no trabalho ia ter esta noite para esconder a descarada dos olhos do marido. Nem era tanto por saber que ele nunca morrera de amores pela nora, mas ainda estava bem viva na memória de todos a histeria dele quando, na semana passada, o filho, sempre dado a partidas, tinha levado a cabo a sua mais recente brincadeira ajudado por aquela doida: de noite, enquanto a casa dormia, dedicaram-se ambos a pintar, exactamente daquela cor, as cabeças de todos quantos nela se encontravam. Nem a avó havia escapado!

Mote de: Graça
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sexta-feira, 12 de junho de 2009

Qual é a tua cor hoje? (I)


Mote - um texto iniciado por: "Quando ela pintou o cabelo de verde..."

Quando ela pintou o cabelo de verde, sentiu-se logo mais confiante. Há anos que era assim. O cabelo reflectia-lhe o estado de espírito. Quando se sentia eufórica, era frequente vê-la com a cabeça vermelha. Ou quando estava apaixonada. Ou quando se sentia zangada e queria mostrar toda a sua agressividade ao mundo. Quando precisava de relaxar, escolhia um azul céu. Se estava triste, mesmo que sem razão, preferia o preto, ou por vezes um cinzento. Hoje, depois da tragédia que lhe tinha acontecido e com o ano novo à porta, sabia que o verde seria a única cor que a poderia a ajudar a encontrar de novo a esperança.

Só uma vez pintou o cabelo de amarelo. Por nenhuma razão em especial. Apenas porque lhe apeteceu.

Mote de: Graça
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Uma nova fase



Terminado o curso, um novo desafio. Pomposamente chamado Clube de Escrita.

Mensalmente, em torno de uma mesa, sete almas juntam-se para partilhar o desfecho dos seus esforços. Como dizia o L. há dias, se mais não se aproveitar, há sempre boa gastronomia…

Os motes são lançados previamente, os resultados seguem nos próximos posts.

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segunda-feira, 18 de maio de 2009

Correntes quebradas


Em escrita automática (processo de escrita contínua, sem interrupções, emendas ou retrocessos), um texto iniciado por: "A corrente do relógio partiu-se".

A corrente do relógio partiu-se. Ele sabia que se tratava de um sinal. Olhou em volta. Não encontrou o tempo. Decidiu avançar assim mesmo. Sabia que não havia volta. Algures haveria de encontrar outro relógio. O pior era o tempo, o tempo que não voltava. Sabia que o tempo não avançava, não envelhecia, quem envelhecia era ele. O tempo é sempre igual, as estações sucedem-se, o Outono precede o Inverno e outro tanto acontece com a Primavera e o Verão. Quem envelhecia era ele, esmagado por aquele tempo, por aquele relógio e agora até por aquela corrente que se partira. Fugia-lhe o tempo.

Seguiu em frente. Em algum ponto do caminho descobriria uma relojoaria, compraria outro relógio, compraria outra corrente, talvez encontrasse outro eu, talvez pudesse ser outra pessoa, com outro relógio no bolso se encontrasse outra corrente, ou com outro relógio no pulso, se isso não acontecesse. Mas sabia que não podia comprar o tempo.
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sexta-feira, 15 de maio de 2009

Nas minhas mãos


Em escrita automática (processo de escrita contínua, sem interrupções, emendas ou retrocessos), um texto iniciado por: “Depois do que sucedeu, lavei meticulosamente as mãos”.

Depois do que sucedeu, lavei meticulosamente as mãos. Não podia mais com aquela sujidade. Não sabia de onde me vinha aquele nojo. Mas era nojo. Estava lá tudo. Enquanto lavava as mãos, vinham-me à memória os detalhes. A faca, o momento de cortar o pescoço, o sangue. O pior de tudo era o sangue, aqueles esguichos na minha direcção. Nem o cuidado de me ter prevenido com um enorme avental me libertou daquele nojo.
Agora, nada, nada, nem as súplicas da minha avó por um arroz de cabidela, me convenceria a voltar a matar uma galinha.
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domingo, 3 de maio de 2009

Feitiçarias


A actividade teve início com a distribuição de uma tangerina e uma bolacha pelo grupo. Fomos convidados a saboreá-los com o objectivo de escrever um texto baseado na seguinte situação:
Um casal dirige-se ao consultório de uma vidente e pede ajuda para resolver um problema. Ela, interrompendo-os, diz: “Não, não me contem. Eu vou descobrir o vosso problema e resolvê-lo. Para isso, só preciso de comer uma bolacha desta caixa e também uma tangerina. A bolacha será de um de vós e a tangerina o outro, e assim, eu vou descobrir o vosso problema”

Impressões sobre os “petiscos”:
Tangerina: Ligeiramente ácida a princípio, revelou-se afinal muito doce. Comia-se e apetecia mais. No final, obrigou a uma saída da sala de aula, para lavar as mãos antes de começar a escrever.
Bolacha: com uma deliciosa cobertura de chocolate, o seu interior era… uma desilusão.

Texto:
- Não, não falem, não respirem! Dêem-me tempo. Deixem-me provar esta bolacha, deixem-me provar esta tangerina.
Sim, já percebi qual é o vosso problema e já sei como resolvê-lo.
Paulina, tu és esta tangerina. Estás toda aqui. Estás um pouco escondida e, por isso, é preciso descascar-te. A princípio pareces ser um pouco ácida, mas depois… quando começamos a saborear-te, vemos que és muito doce e isso engana-nos. Porque tu impregnas-te nas nossas mãos e deixas marcas que é preciso lavar. E é nisso que tu és boa: lavas sempre daí as tuas mãos. Não se pode confiar em ti. E o Serafim já percebeu isso.
Quanto a ti, Serafim, o teu problema é o inverso: olhamos para ti e és apetitoso. Essa camada de chocolate que te cobre a bolacha, esse charme que te encobre a pele, apetece. Apetece provar, dar uma dentada. Foi o que fez a Paulina. Mas depois, quando damos a primeira dentada e chegamos ao teu interior… vem a decepção. Esse teu interior é salobro, pobre. Não sabe a nada. E a Paulina já te deve ter experimentado, porque também ela já percebeu quem tu és.
E agora tirem esses ares de embasbacados da minha frente, tenho outros clientes ali na sala à minha espera e preciso comer mais bolachas e mais tangerinas. Sim, não façam essas caras, é o que faço para ganhar a vidinha.
Quanto a vós, o vosso problema está identificado e é fácil de resolver: diferenças irreconciliáveis de feitios. Vocês não podem ficar juntos. Não se esqueçam de passar na recepção, para pagar a consulta e também na igreja, para desmarcarem o casamento.
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quarta-feira, 15 de abril de 2009

Histórias que crescem


Em quatro frases, contar uma história (quatro momentos: A, B, C, D). Depois, expandi-la, “preenchendo” com 3 novos elementos de texto entre cada frase, de forma a complementar essa história, sem lhe retirar o sentido original.

História inicial:
[A] Entrei no autocarro mas não reparei nele logo de imediato.
[B] Afinal, não é todos os dias que se vê alguém a estender-nos a mão no exacto momento em que nos vamos sentar.
[C] Foi então que compreendi o que andava ali a fazer aquela figurinha.
[D] Nem queria acreditar que se tratava de um “arrumador de lugares”, que tentava ganhar a vida dentro de um autocarro!

Versão expandida:
[A] Entrei no autocarro, mas não reparei nele logo de imediato. [A1] Tinha sido um inicio de dia aterrador. [A2] Tinha queimado a torrada, o café estava tão quente que ainda sentia a língua a arder, o endiabrado gato do meu vizinho conseguira outra vez pular a cerca e saltar-me para cima, rompendo-me as meias com as suas garras. [A3] Além disso, dois relatórios, ainda inacabados, para entregar impreterivelmente nessa manhã, olhavam-me de dentro da pasta sem qualquer contemplação, desafiando toda a minha capacidade de manter a calma. [A4] Foi por isso que nem dei pela presença de um vulto de gabardina, que teimava em permanecer no corredor do autocarro e se aproximava cada vez mais de mim.
[B] Afinal, não é todos os dias que se vê alguém a estender-nos a mão no exacto momento em que nos vamos sentar. [B1] A princípio, ignorei-o, mas depois tornou-se impossível: notei que à minha volta várias pessoas já se riam à socapa. [B2] Que quereria aquele homem de aspecto sinistro? Seria alguém a querer impor-me mais uns quantos folhetos publicitários? Mas agora já nem no autocarro podia estar em paz? [B3] O mais estranho é que eu não via quaisquer sinais de propaganda naquela mão, que apontava assustadoramente para mim. Apesar do espanto, pensei tirar partido da situação, apelar ao meu sentido de humor, agarrar-lhe a mão peluda e desatar a ler-lhe a sina. [B4] Tive vontade de rir histericamente da minha própria ideia, mas pareceu-me mais prudente não fazer nenhuma das duas, quer agarrar a mão dele, quer desmanchar-me a rir, como se mundo fosse acabar ali.
[C] Foi então que compreendi o que andava ali a fazer aquela figurinha. [C1] Tudo porque a pessoa sentada a meu lado me deu uma discreta cotovelada, apontando levemente com a cabeça na direcção da proeminente barriguinha do cavalheiro. [C2] Reparei numa pequena bolsa que trazia atada à cintura onde, com a mão livre, titilava ruidosamente diversas moedas que ali se encontravam. [C3] Percebi que aquele senhor tinha dado um novo fôlego à já satura profissão de “arrumador de automóveis”. [C4] E percebi também que aquele senhor procurava encontrar-me aquele que, para ele, seria o melhor lugar para me sentar. Nem preciso de vos dizer que ele contava ser recompensado por tão árdua tarefa.
[D] Nem queria acreditar que se tratava de um “arrumador de lugares”, que tentava ganhar a vida dentro de um autocarro!

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domingo, 29 de março de 2009

Silêncios com alma


A partir de três palavras que, em nossa opinião, nos definam, escolher duas e, conjugando-as com a palavra “camisola” (a propósito de uma camisola há muito abandonada na sala), escrever um pequeno texto.

Palavras escolhidas:
Silêncio
Alma

Gosto dos meus silêncios.
Gosto de ouvir o que têm para me dizer. Gosto de me deter sobre os seus sons.
É neles que a minha alma é mais verdadeira.
Os meus silêncios são ilhas de calor que apetece vestir e albergam minha voz.
São um caminhar de passos seguros que me levam para lá de mim, para lá da minha alma.
Os meus silêncios não são solidão, têm cores suaves, são aconchego, cheiram a camisolas quentinhas acabadas de tricotar, sabem a Verão, parecem o mar, são a Paz.
A minha Paz.
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quarta-feira, 25 de março de 2009

Lavar a alma


Escolher um local, em casa, onde habitualmente não permanecemos. Observar daí o mundo de um ponto de vista nunca antes percepcionado. Depois, escrever sobre a experiência.

Local escolhido: o (interior do) tanque da roupa. Lá dentro, imaginei-me uma das peças que usualmente o habitam

Texto:
Dentro de um tanque, vejo-me roupa suja, suja de todos os dias. Ouço à minha volta uma azáfama de higiene, um corre-corre de limpeza.
Sinto-me afogada em água que em breve será ritual de purificação, um baptizado que me devolverá ao mundo das coisas limpas.
Não estou sozinha e sei que sou apenas um pequeno grão acumulado ao longo de dias. Sou a manga de uma camisa, a perna de uma calça, o cós de uma saia, sou uma peúga, uma peça de roupa íntima. Em cada uma que sou, há nódoas de vergonha que tornam indistintas as muitas que julgo ser. Quando sair daqui voltarei a ter personalidade própria e, então, a blusa suja que sou agora, voltará a ser a mais bela peça de arte costurada que alguma vez terá pousado sobre um ombro ou sobre uma das outras companheiras que agora por aqui andam a boiar comigo.
Lá fora, o mundo espera-me sobre a forma de um estendal. Isto de pendurar roupa tem que se lhe diga e espero que quem vier tratar de mim saiba da arte. Vou ficar muito quietinha, deliciada, a sentir em mim o calorzinho do sol, muito esticadinha, para secar muito depressa.
Mas por agora estou aqui, dentro deste tanque, a fazer companhia a outras malcheirosas como eu. Atiram-nos para cima um pó perfumado – ouvi chamarem-lhe detergente! – e… atchim! ponho-me logo a espirrar, o nariz a queixar-se de alergia!
Vão bater-nos, esfregar-nos, passar-nos por água limpa, agora o amaciador, água limpa outra vez, agora torce, torce, bate outra vez sem piedade sobre a pedra frisada do tanque e…

Sinto a alma lavada!
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quinta-feira, 5 de março de 2009

Olhar o mundo


Escolhido um local, fora da sala de aula, para “permanecer” por algum tempo, olhar dali o mundo com uma postura que normalmente não seria habitual naquele local e circunstâncias.

Escrever a partir da frase imaginária “O mundo visto daqui”.

Texto:

De joelhos naquilo que parecia um parapeito de uma janela. As mãos firmemente agarradas nas grades que funcionam como uma cortina para a rua.
O mundo visto daqui é feio, mas não me assusta. Para fora, vêem-se edifícios velhos e sujos, mas, sobre eles, uma nesga de céu. Olho repetidamente para cima.

Como estou de joelhos, dir-se-ia que estou a rezar. Como olho para o alto, talvez esteja em busca de um sentido para a existência – a que alguns chamariam Deus.

Mas, curiosamente, é quando olho para baixo e encontro a meus pés um vaso com uma planta, suspenso nas mesmas grades onde continuam depostas as minhas mãos, que vejo que ali mora uma nascente de vida, ou seja, a esperança.

Sinto-me liberta da minha prisão.


(Nota: este texto é uma homenagem à Madalena, que começou hoje a aventura da vida)

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domingo, 1 de março de 2009

O espaço à minha volta


Vagueando pelo espaço circundante à sala e aula, com a percepção máxima dos cinco sentidos, anotar todas as sensações por eles alcançadas. Escrever um texto sobre a experiência

..................(saio para o hall, toco na aduela de uma porta)

É rugoso. Ouço um dossier que se fecha sobre uma mola ruidosa. Ouço passos. Ouço uma caneta que não é minha. Vejo a rua. Ouço um ruído de fundo de uma qualquer máquina que não identifico. Ouço uma porta a ranger.

Sinto frio e sinto medo.

.................(desloco-me para o exterior, fico no patamar da escada)

Vejo branco. Branco polvilhado de negro e castanho. Há madeiras porosas e pouco tratadas. Há uma parede áspera que alguém quis tratar com tinta de areia. Arranha. Continuo a ouvir um zumbido de uma máquina ininterrupta. Há à minha volta uma esfera de velho e antigo.

É a cidade envelhecida.

Sinto frio e sinto medo.

Sinto a aragem de uma janela aberta. Ouço o ruído. Será uma ventoinha? Há degraus que se precipitam á minha frente.

Sinto vertigens.

.................(volto à sala)

Recuo. Volto á sala e toco num quadro meio-esferovite, meio-madeira. Áspero. Também ele arranha.

.................(passo para a outra sala)

Passo à outra sala. Uma cortina preta cobre a janela onde devia haver luz. Talvez quem a colocou ali saiba que é noite, do outro lado só a escuridão. Toco a cortina. É leve e mais agradável ao toque do que pensei. Toco-lhe e ela esvoaça. Logo abaixo dela a janela é rematada com uma pedra cinzenta. Dura.
Apoio a mão sobre uma mesa de madeira para escrever. Vou agora senti-la.
É lisa, mas percebo-lhe os veios. Móvel de outros tempos, madeira a sério. É macia e agradável.

À minha volta branco, preto, castanho. Paredes, cortina, degraus, móveis.

.................(volto à sala de aula)

Volto à sala. Sento-me. Há luz. Finalmente saio da penumbra. Escuto as cores, olho os sons na rua, ouço a vontade de não largar a caneta.

Sinto vontade de escrever.

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sábado, 28 de fevereiro de 2009

De volta



Dou hoje início à postagem de uma nova série de textos nascidos de uma nova aventura pela Escrita Criativa. De novo numa sala de aula, novos colegas, o formador é um escritor. Tantas coisas boas juntas!

Aguardo-vos. Vão aparecendo e comentando.

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quarta-feira, 11 de fevereiro de 2009

A carta



Entrou em casa com um pequeno papel azul e disse-se encartado. O momento era de comemoração. Saímos para jantar fora e foi ele que levou o carro.
Estava confiante e mostrou-se seguro. Conhece as regras e cumpre-as.
Julga que aquele ridículo pedaço de papel azulado o legitima por adulto. Não me ilude.
Eu sei que não é.
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quarta-feira, 21 de janeiro de 2009

A vida ao contrário


Veio por mail. Surpreendeu-me a ideia. Viver ao contrário.
E se pudesse ser assim?

“Eu quero viver a minha próxima vida ao contrário: começo morto e livro-me disso.
Depois acordo num lar para a terceira idade, sentindo-me melhor cada dia que passa.
A seguir sou expulso, por estar demasiadamente saudável.
Gozo a minha reforma e recebo a minha pensão de velhice.
Então, quando começo a trabalhar, recebo um relógio em ouro como presente logo no primeiro dia.
Trabalho 40 anos, até ser considerado demasiado novo para trabalhar.
Vou para o liceu e bebo álcool, vou a festas e sou promíscuo.
Depois vou para a escola primária, brinco e não tenho responsabilidades.
Transformo-me então num bebé e passo os últimos 9 meses a flutuar pacífica e luxuosamente, em condições equivalentes a um spa, com ar condicionado, serviço de quartos entregue por cabo, e depois...
Acabo num grande orgasmo!”

Ontem vi um filme, “O estranho caso de Benjamim Button”, que, de algum modo, transpõe para o cinema esta noção. Não é só isto, claro, é muito mais profundo, mas a ideia está lá.
Um filme para reflectir.
De David Fincher. Com (mais uma) magistral interpretação de Brad Pitt. Também Cate Blanchett. E com a Júlia Ormond.

Sublime. Um grande filme, que grande noite!
Saí da sala em silêncio. Às vezes, as palavras sobram.

Resumo: Benjamin Button tem um destino curioso e nasceu em circunstâncias pouco habituais. A sua vida é a estranha história de um homem que nasce com 80 anos e vai regredindo na idade. O filme conta o seu peculiar percurso e as atribulações da sua vida, desde 1918 até à actualidade, os seus amores, as suas alegrias e os seus dramas. E aquilo que consegue sobreviver à passagem do tempo.
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segunda-feira, 12 de janeiro de 2009

E se cada letra fosse uma flor?


Foi há algum tempo. Eu andava numa fascinante descoberta pelo museu e jardins da Fundação de Serralves, absolutamente deslumbrada, como sempre, com cada pedaço de mundo novo que ia desfilando diante dos meus olhos, quando cheguei à Sala do Serviço Educativo. Num espaço, na altura, ocupado com uma maravilhosa exposição feita de jardins (portáteis) construídos por crianças de 81 escolas de todo o país, encontrei um tesouro. A toda a volta da sala, no alto de cada parede, bem junto ao tecto e em letras coloridas, uma deliciosa mensagem esperava por mim.

Eram horas de encerrar portas, mas isso não me inibiu. Lembro-me da minha alegria infantil a “roubar” aquele pedaço de magia, que escrevi num papel encontrado à pressa, enquanto a funcionária olhava de lado, ora para mim, ora para o relógio, num desacerto de quem não percebe uma emergência.

E eu a ser criança outra vez. E eu a ser feliz outra vez.

..................E SE CADA LETRA FOSSE UMA FLOR?

..................................A... a flor não mora cá
..................................B... brota do chão
..................................C... fica em botão
..................................D... cresce no dado
.............. ...................E... abre em segredo
........... ......................F... dou-lhe um tabefe
..................................G... fala baixinho
..................................H... já não há
...................................I... eu nunca vi
..................................J... cala a boca
..................................L... é cor de pele
..................................M... usa creme
..................................N... faz óó
..................................O... desfaz-se em pó
..................................P... ninguém vê
..................................Q... sabe porquê
........... ......................R... há quem lhe berre
............ .....................S... arrefece
............. ....................T... fica à mercê
..................................U... a olho nú
..................................V... diga você
..................................X... é como diz
..................................Z... foi a que eu fiz

Quero acreditar que ainda lá está à minha espera, à espera do dia em que eu voltar. Se passarem por lá, não deixem de me contar.
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sexta-feira, 2 de janeiro de 2009

Para que conste



Esta foi a mais bonita mensagem de ano novo que recebi. Veio da Dora.

“Que neste novo ano tenhas 2009 motivos para sorrir.
E que a nossa amizade seja um deles!
E se algum dia a luz da nossa amizade se apagar… que se lixe! Acende-se uma vela.
E se a vela se apagar… que se lixe! Somos amigos às escuras.
Porque a verdadeira amizade brilha por si mesma.”

Obrigada Dora!
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quinta-feira, 1 de janeiro de 2009

É um ano novo


Pus uma camisola verde-esperança e passou num instante. É sempre assim: no fim fica o vazio de um desfecho que ficou aquém da expectativa.

Agora é cruzar os dedos e acreditar outra vez. Porque as passas, já se viu, não resultam.

P'ró ano há mais.
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terça-feira, 23 de dezembro de 2008

HÁ NATAL



(Retirado da mensagem de Natal do Tio Escola)

Se tens tristeza, alegra-te!
O NATAL é alegria.
Se tens inimigos, reconcilia-te!
O NATAL é paz.
Se tens amigos, busca-os!
O NATAL é encontro.
Se tens pobres a teu lado, ajuda-os!
O NATAL é dávida.
Se tens soberba, sepulta-a!
O NATAL é humildade.

.................Se tens trevas, acende a lâmpada!
.................O NATAL é luz.
.................Se tens pecados, converte-te!
.................O NATAL é vida nova.
.................Se vives na mentira, reflecte!
.................O NATAL é verdade.
.................Se tens ódio, esquece-o!
.................O NATAL é amor.
.................Se tens fé, partilha-a!
.................O NATAL é Deus connosco.

A TODOS BOAS FESTAS E UM SANTO NATAL
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sexta-feira, 28 de novembro de 2008

Que tens de teu?


Zangou-se com ele e veio-se embora.

Ele deixou-a ir e não tentou segurá-la. Doeu-lhe.

Ficou a pensar: se fosse definitivo, que tinha para trazer de lá?

Quando fechamos uma porta, que temos de verdadeiramente nosso para trazer connosco?
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segunda-feira, 10 de novembro de 2008

A noite



Nada importa agora.
A noite. O silêncio. O dia é a noite, esta noite em que te estendes no meu silêncio.
O teu corpo nú. Tu.
A tua boca. A tua língua que me procura. Pele. Pele na pele.
Que importa agora?
O dia é a noite, esta noite que me grita. Silêncio, mas sons. Gemidos no silêncio. A noite. Plena.
O rosto sem ver. Mãos. As tuas mãos, os teus dedos. Urgências. Maiores.
Os sons. O silêncio.
Agora não importa. Só tu. Só isto. Nós. Os nossos corpos. Sem ver. A noite.
Somos pedaços de uma coisa maior.
Agora um pouco mais. Cheguei. Contigo. Tu também.
Antes o fulgor. Agora, a paz.
Em silêncio, ainda.
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segunda-feira, 27 de outubro de 2008

Regresso



Quase noite, mas ainda o cinzento do dia. Cinzento de chuva. Uma chuva que incomoda. Conduzo de regresso a casa. Casa. Seguro o volante com uma mão. A outra vagueia, distraída. Ajeita o cabelo, pousa no assento, na caixa de velocidades, passa pelo rosto, descansa momentaneamente na perna, desliza para a caixa outra vez e aí fica. A dança dos pés nos pedais não me é estranha, mas é como se dela não tivesse consciência. Como de nada do que me rodeia. Vejo sem ver a auto-estrada, um ziguezague á minha frente, as luzinhas vermelhas dos carros à minha frente, todos em movimentos iguais aos meus, mas todos a anteciparem-me. Regresso. Um nevoeiro cerrado a subir a serra. Um verde cinzento na natureza. Do verde bonito dos dias de sol, nada. O rádio a tocar, eu sem ouvir. Naninni? Talvez. A voz é rouca, soaria bem se eu a ouvisse. Não ouço.

Desde que te foste embora, não ouço. Não ouço, não sinto, não vejo. Regresso. Casa. Penso no tempo em que a minha casa era uma janela. Uma janela de ilusões. Mas tu foste embora e ficou o vazio. Incomparável.
Conduzo devagar. Um vagar desatento de quem não dá conta. A voz é agora masculina. “E é sempre a primeira vez, em cada regresso a casa”. Veloso. Faz-me lembrar-te. Por onde andas agora?

Eu sabia a cada vez que. Sempre que. Em todas as vezes que
- enviar
um friozinho, porque eu sabia que. Que podia ser a ultima. Que talvez já não viesses. Regresso. Às vezes demorava dias, semanas até. Às vezes era espontâneo, outras vezes um mero acaso. Mas sabia que podia ser a ultima. A ultima vez que. Enviar.
Outra voz masculina. Num inglês sensual, diz que precisa de mim esta noite. Rio-me histericamente ao pensar que não fala para mim. Que nunca ninguém assim para mim.

Avanço. Chove ainda. A estrada inclina-se e uma Beatriz Costa em madeira anuncia-me por onde passo. Uma subida agora e a portagem já ali à frente. Estou quase. Regresso.
Aprender. São assim agora os meus dias. Aprender a tua ausência. O livro da Margarida devolvido á prateleira depois de lido e tanto de mim ali. Uma ausência diária. Aprender. Recuperar a partir do que ficou, do que tenho. Definho e nem dou conta. Tanto de mim ali. Inexplicável.

Estou de regresso a casa.
Dizer-te só mais uma vez. Quando desceste do meu comboio, deixaste uma permanente saudade. Inesquecível.
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