quarta-feira, 25 de março de 2009

Lavar a alma


Escolher um local, em casa, onde habitualmente não permanecemos. Observar daí o mundo de um ponto de vista nunca antes percepcionado. Depois, escrever sobre a experiência.

Local escolhido: o (interior do) tanque da roupa. Lá dentro, imaginei-me uma das peças que usualmente o habitam

Texto:
Dentro de um tanque, vejo-me roupa suja, suja de todos os dias. Ouço à minha volta uma azáfama de higiene, um corre-corre de limpeza.
Sinto-me afogada em água que em breve será ritual de purificação, um baptizado que me devolverá ao mundo das coisas limpas.
Não estou sozinha e sei que sou apenas um pequeno grão acumulado ao longo de dias. Sou a manga de uma camisa, a perna de uma calça, o cós de uma saia, sou uma peúga, uma peça de roupa íntima. Em cada uma que sou, há nódoas de vergonha que tornam indistintas as muitas que julgo ser. Quando sair daqui voltarei a ter personalidade própria e, então, a blusa suja que sou agora, voltará a ser a mais bela peça de arte costurada que alguma vez terá pousado sobre um ombro ou sobre uma das outras companheiras que agora por aqui andam a boiar comigo.
Lá fora, o mundo espera-me sobre a forma de um estendal. Isto de pendurar roupa tem que se lhe diga e espero que quem vier tratar de mim saiba da arte. Vou ficar muito quietinha, deliciada, a sentir em mim o calorzinho do sol, muito esticadinha, para secar muito depressa.
Mas por agora estou aqui, dentro deste tanque, a fazer companhia a outras malcheirosas como eu. Atiram-nos para cima um pó perfumado – ouvi chamarem-lhe detergente! – e… atchim! ponho-me logo a espirrar, o nariz a queixar-se de alergia!
Vão bater-nos, esfregar-nos, passar-nos por água limpa, agora o amaciador, água limpa outra vez, agora torce, torce, bate outra vez sem piedade sobre a pedra frisada do tanque e…

Sinto a alma lavada!
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