quinta-feira, 23 de dezembro de 2010
Já nasceu
segunda-feira, 16 de agosto de 2010
Para ti, no teu dia
Sub-título 2: De como o absurdo pode dar sentido à vida
Conheceram-se num computador, no final de um mês de Março de um ano que já passou. Ele meteu-se com ela e ela retorquiu, um pouco desconfiada a princípio. Tão desconfiada que só muito lentamente o deixou invadir a sua vida.
Devagarinho, foram-se aproximando. Descobrindo. Encontraram-se uma e outra e outra vez, em inúmeras seduções do corpo e da alma.
“Devagar vamos começando uma relação que vai crescendo. Vou descobrindo uma mulher de uma riqueza interior notável. Uma mulher sensível, estimulante, viva. Uma mulher que "mexe" comigo.”
Viviam longe um do outro. Muitos quilómetros geográficos os separavam, mas a ela parecia-lhe que estavam à distância do pensamento. Ela acalentava o sonho de um dia poder vencer a distância física e acreditou sempre que um dia iria conhecê-lo, ver a luz dos olhos dele (às vezes, ela é muito ingénua).
Ele ocupava os seus dias numa sociedade financeira, ela às voltas com papéis num trabalho banal, sem história. Ele com os seus números, ela com as suas letras. Ele, um profissional de sucesso. Ela, uma pessoa comum.
Ela questiona-se muitas vezes como é que duas pessoas tão diferentes, de mundos tão opostos, criaram uma tão grande cumplicidade num computador, essa máquina que é a lavoura da época deles, e com ele aprendeu como o mais improvável absurdo pode dar sentido à vida. Ela continua ainda hoje a procurar um sentido para aquele encontro.
“Às vezes surpreende-nos o que nos separa e no entanto é tão mais surpreendente o que nos une uns aos outros.”
Trocaram fotografias e ficaram a conhecer-se. Ele seduziu-a com os seus olhos marotos e as suas covinhas no rosto, que a encantaram. Ela, com os seus kissables lips, embora não soubesse o que isso era.
Durante muito tempo, o mundo dela foi aquele computador. Ele escrevia-lhe com pena de poeta. Ela, obsessiva e perfeccionista, gostava do pormenor, ganhou fama de ser cinzenta e levou-o várias vezes a pedir-lhe que relaxasse e deixasse fluir a vida. Ela pergunta-se se, nessas ocasiões, ele estava a falar consigo próprio. Ele, que valorizava a vida, cada minuto de vida. Ela, ávida de vida.
“As pessoas não valorizam o dia a dia. Eu valorizo.”
Ele dizia que ela era perspicaz (talvez fosse) e se calhar era por isso que se retraía e recolhia à concha de cada vez que ela chegava perto de um ponto sensível dele.
Ele queria fazer mais pela vida dele e dos outros, ir mais longe, voar mais alto, desinstalar-se e fê-la ver o mundo com outros olhos.
“Acho que gostava que as pessoas me lembrassem como um homem bom. Tocar a vida das pessoas de maneira positiva.”
Ele um inconformado (inconformista?). Ela uma deslumbrada (deslumbrante?).
Comboios, helicópteros, motos, tudo foi pretexto para conversas soltas. Falaram de livros lidos e músicas escutadas. Falaram de frustrações, de inquietações, de vivências, de expectativas, de surpresas, desafios e fantasias. De sonhos. Sonharam. Viveram. E sonhar foi também viver.
Juntos recordaram passados, memórias, tempos idos. E falaram do presente e, com isso e por isso, sentiram-se vivos. E projectaram futuros. Desassossegaram-se. Mas os dois sabem que grande parte das vezes em que conversavam um com o outro não estavam a fazer mais do que a falar para si mesmos.
Ele chamou-lhe génio, logo ele, que ela considerava sábio, e um dia disse-lhe que ela era inesquecível, inexplicável, incomparável. Ela acreditou (às vezes, ela é muito ingénua), mas não percebeu que aqueles três in só queriam dizer que afinal ela já estava out da vida dele.
Ela seguiu o caminho dela, novos rostos repovoaram a sua vida, que ganhou novas cores, novas formas, novos significados. Outro tanto terá acontecido com a vida dele. Às vezes ainda se encontram, mas já não se falam. Ela pergunta-se muitas vezes se ele a esqueceu e porquê. Ela nunca o esqueceu.
Mas nela ficou sempre a mágoa. De nada mais ter sabido dele. De não ter podido acompanhar-lhe o percurso, os sonhos, os projectos. Mas ela nunca mais soube. Nela ficou a mágoa.
“A vida também se mede pelas marcas que deixamos nos outros e que os outros deixam em nós. É a ausência destas marcas que nos deixam uma sensação de vazio muitas vezes difícil de suportar.”
Hoje é o aniversário dele. Ele disse-lhe que não dava importância a datas, mas ela tinha a mania das datas e queria assinalar o dia de hoje e oferecer-lhe um presente, mas não sabia o quê. Então pensou que para ele nada mais poderia ter do que palavras. As palavras, essas marotas que foram sempre o elo de ligação entre eles, por poderem expressar sentimentos, sensibilidades, emoções. Ela nada mais poderia fazer do que dedicar-lhe palavras. Estas. E dedicou-lhas.
Ela queria dizer-lhe que gostava que ele fosse muito feliz, mas sabe que uma felicidade tão plena como a que ela quer para ele não existe. Às vezes, felicidade não é mais do que sabermos que, algures, alguém foi parte do nosso caminho e adoçou a nossa vida.
sábado, 10 de julho de 2010
Mistérios...
Não olhes agora. Eu sei o quanto gostas dele, sei dessa admiração que lhe tens. Nos romances, nas crónicas, nas cartas que escreveu à mulher quando, com a guerra, lhe pediam para fazer a paz, sei como te revês naquela escrita profunda que ele parece arrancar das entranhas. Compreendo-te. Caramba, o homem consegue revirar-nos do avesso. Então eu não me lembro de quantas vezes perguntámos um ao outro “mas como é que ele consegue?”, depois de mergulharmos em mais uma das suas crónicas? O homem arranca-nos por dentro!
Mas não olhes agora, não o perturbes hoje. Vê como está cansado. Eu sei que trazes contigo o último livro dele e contavas levar um autógrafo. Mas isso era ali em baixo, no stand que a editora dele tem ali na Feira e onde ele esperou toda a tarde pelos seus leitores, com aquele ar distante e até irritado, como se o mundo o aborrecesse. Agora, que terminou, se veio aqui ao bar, foi certamente para descansar. Olha, tal como nós fizemos esta pausa antes de nos lançarmos de novo ao Parque, serpenteando entre stands.
Repara como está debilitado desde que foi surpreendido pela doença. Para um indivíduo reservado como ele, tornar público um cancro deve ter exigido coragem, não achas? E olha que mesmo com este ar abatido não deixou de vir. Dizem-no irascível, mas mostrou consideração pelos leitores.
Vá, deixa-o lá, o teu autógrafo pode esperar por outra ocasião. Não o perturbes agora.
Personalidade pública: António Lobo Antunes
sexta-feira, 18 de junho de 2010
ADEUS SARAMAGO
"A princesa já não pensa nos homens que viu na estrada. Agora mesmo se lembrou de que, afinal, nunca foi a Mafra, que estranha coisa, constrói-se um convento porque nasceu Maria Bárbara, cumpre-se o voto porque Maria Bárbara nasceu, e Maria Bárbara não viu, não sabe (...). Ai as culpas de Maria Bárbara, o mal que já fez só porque nasceu (...). Senhora mãe e rainha minha, aqui estou eu indo para Espanha, donde não voltarei, em Mafra sei que se constrói um convento por causa de voto em que fui parte, e nunca ninguém de cá me levou a vê-lo, há nisto muita coisa que não sei entender, Minha filha e futura rainha, não retires ao tempo que deve ser de oração o tempo de vãos pensamentos, tais são esses, a real vontade de teu pai e senhor nosso quis que se levantasse o convento, a mesma real vontade quer que vás para Espanha e o convento não vejas, só a vontade de el-rei prevalece, o resto é nada, então é nada esta infanta que eu sou, nada os homens que vão além, nada este coche que nos leva, nada aquele oficial que ali vai à chuva e olha para mim, nada, Assim é, minha filha e quanto mais se for prolongando a tua vida, melhor verás que o mundo é como uma grande sombra que vai passando para dentro do nosso coração, por isso o mundo se torna vazio e o coração não resiste, oh, minha mãe, que é nascer, Nascer é morrer, Maria Bárbara."
In: O Memorial do Convento
domingo, 13 de junho de 2010
Sem palavras
Meu amor,
Esta noite tive um pesadelo perverso. Sonhei que todas as palavras tinham desaparecido de repente, sem deixar rasto e como que por magia. Imaginas um mundo sem palavras?
Naturalmente, desapareceram também os livros, as revistas, deixou de haver notícias, a comunicação social evaporou-se. Nos sonhos acontecem uns fenómenos instantâneos que não sabemos explicar e foi o caso: saí para a rua e nos placards publicitários ou nos letreiros das lojas… nada, dizeres nenhuns. Nas tabuletas das ruas… não havia nada, carros e pessoas não sabiam para onde se dirigir. A comunicação entre as pessoas era uma autêntica babel. Sem palavras, tinham desaparecido as bibliotecas, as livrarias. Isto só para te dar alguns exemplos, claro.
Senti medo, muito medo. Que mundo triste nos esperava!
Tu conheces-me, tenho-me por razoável, para mim a palavra não é o alfa e o ómega de todas as coisas, mas, por momentos, no meu pesadelo assaltou-me um pensamento horrível: sem livros, que presentes teria para ti no futuro? Já viste do que me fui lembrar?
Acordei sobressaltado. Havia no ar o cheiro do medo. O medo cheira-se, sabes?
Olhei para o lado. Dormias serena e ver-te nessa fragilidade que mora em ti quando dormes, acalmou-me logo um pouco. Mesmo assim, saltei da cama e corri para a sala: tudo nos seus sítios, a ordem das coisas ainda existia. Prateleiras repletas de livros, papéis cheiinhos de frases amontoados por todo o lado, deixados ao abandono, como sempre os deixo à noite. O silêncio em cada palavra, em cada letra, em cada traço. O tempo não tinha passado por aqui. Os meus medos já não existiam.
Mote: Nuno
quinta-feira, 27 de maio de 2010
Redundante
Meu amor,
Vou partir por esse mundo. Dar a volta ao mundo. Estou decidido. Dizem que o mundo é redondo, parece-se assim com uma laranja, não é? Pois eu vou! Queres vir comigo?
Estou farto desta vida de rectas, de pessoas quadradas, não suporto o meu mundinho triangular, os dias de ondas que rebentam sempre iguais. Não voltarei a perder o meu tempo com pescadinhas de rabo na boca, rotundas que se fecham sobre si mesmas e não levam a lado nenhum. Quero mais. Posso mais.
Parto hoje mesmo, estou entusiasmado! Queres vir comigo? Vou no sentido oposto ao das voltas que a terra dá, quero ver se é verdade isso de a terra rodopiar sobre si mesma. Mas se for, vencê-la-ei. Irei contra a sua rota. Sei que não enfrentarei becos e recantos, afinal ela é redonda, não é? E chegarei ao ponto de partida depois de vencidos os socalcos da casca da laranja.
Não quero que penses, no entanto, que recuso as curvas da vida. Não é isso. Somente não quero mais os previsíveis circuitos que todos os dias espreitam a minha rotina. Aliás, rotina nunca mais. Já viste palavra mais rotunda? Faz lembrar um relógio de ponteiros eternos, aprisionados num mostrador de vidro baço.
Meu amor, estou de partida, vou dar a volta ao mundo. Queres vir comigo?
sexta-feira, 23 de abril de 2010
Que efeito tem o amor em ti?
Meu amor,
Espero-te. O aeroporto está, a esta hora, efervescente, como em todas as horas. Vejo multidões de pessoas que se movimentam apressadamente diante dos meus olhos. Assisto à azáfama de passos acelerados. Todos parecem saber exactamente o que fazer, para onde ir.
Eu não. Sinto-me dispersa desde que foste para essa ilha perdida no Atlântico. Dizes-me que é muito bela, tem um café famoso, uma marina onde chegam embarcações do mundo inteiro, grandes crateras herança de vulcões extintos, uma natureza verdejante, pujante. É bonita, dizes-me. Para mim, não passa de um pedaço de terra cercado de água por todos os lados. Voltas hoje e ainda bem. Quero-te aqui, fazes-me falta.
Ouço vozes sedutoras que anunciam voos internacionais em várias línguas. Como não te anunciam a ti, a mim não me seduzem. Vejo painéis luminosos, letrinhas e números prometedores dos aviões que vão chegar, que vão partir. Recordo o dia em que partiste.
Observo pessoas que correm apressadas, talvez pessoas importantes com motivos importantes para partirem, para chegarem.
Do painel, vem agora a má notícia que nem as vozes sedutoras se atreveram ainda a anunciar: o teu voo foi cancelado. Há mau tempo na ilha. Penso em ti, perdido no Atlântico, cercado de água por todos os lados. Não saio daqui, vou esperar-te. Tenho saudades de estar cercada de amor por todos os lados.
segunda-feira, 22 de março de 2010
De pecado
Meu amor,
Hoje voltei lá. Digo-o sem vaidade, aliás não é coisa de que me orgulhe.
Como sabes, ela sempre me acompanhou. Desde pequenino. A minha mãe atafulhava-me. A minha avó via-me anafado e logo exclamava, cheia de orgulho: «está com tão boas cores!». Até nas mãos do meu avô paterno, sempre tão avarento, havia sempre uma moeda para mais uma guloseima. Hoje, quando penso no efeito de tudo aquilo, sinto uma ira imensa. Não deles, coitados, para eles era uma segurança. A minha raiva é de mim mesmo, por não conseguir controlar-me. Na verdade, foi sempre ela que controlou a minha vida. Não sei se por preguiça da minha parte, se por fraca força de vontade. Nunca resisti, nunca quis resistir, anseio por aquele prazer, é como uma orgia, há nisto um toque de luxúria.
No fim, resta-me a frustração e outros sentimentos menos nobres. Não imaginas a inveja que sinto de ti quando te olho na tua magnífica elegância.
Mas, dizia eu, hoje voltei lá. Na aproximação ao prédio, o friozinho do costume ao encarar a placa por cima da porta: «Gulosos Compulsivo Anónimos». É intimidante, sabes? e é preciso coragem. Entrei e juntei-me às outras pessoas que já estavam sentadas em cadeiras dispostas em círculo. Conheço as histórias de alguns daqueles rostos e senti pena de um ou outro, porque lhes pressenti a culpa. Quando chegou a minha vez, elevei a voz e pronunciei com determinação: «Eu alimento-me de forma compulsiva, mas há exactamente 18 dias que não cedo à tentação».
Pecado que me coube em sorte: a Gula
sexta-feira, 19 de março de 2010
Com palavras de lá
«Xirú, tem aqui sua nova assistente. O espectáculo é logo mais à noite, o melhor é ensaiarem agora um pouco».
Xirú Bananaeira respirou fundo e olhou mais uma vez para a rapariga. Não percebia porque razão o seu agente tinha contratado aquela moça temporona. Tudo o que nela pudesse prometer parecia já ter acontecido. Se ao menos ela soubesse dançar, estava disposto a esquecer os anos a mais que ela aparentava, os quilitos que não disfarçava e o palmo de cara que lhe faltava.
Longe iam os tempos em que ensinar estas raparigas era barbada e lhe dava um tremendo gozo. Agora, tudo o que elas conseguiam era trazer de volta a lembrança de Conchita Consuelo e da semana que tinham passado em Brasina, esquecidos da vida. Lá, na Croácia, naquela village distante do mundo, tinham sido felizes. Mas, enfim, o seu agente descobrira que ela era casada com o empresário do espectáculo e não admitira que uma paixoneta interferisse com o esforço e suor de meses de trabalho. Em pouco tempo, tinha feito Conchita desaparecer e, com ela, toda a sua esperança num futuro longe dos palcos, lugar onde sentia não pertencer.
Desde aquele dia ganhou fama de bochinho e agora ainda tinha que ensinar aquela flausina a dançar ao som da concertina. Que decadência, meu Deus, que figuras era obrigado a fazer.
Bom, e se queria despachar-se, talvez fosse melhor começar, ajudando a rapariga a descer da cadeira. Nunca entendera aquela fixação feminina de pular para cima de mesas e cadeiras sempre que se deparavam com capinchos, que ainda por cima eram bichos tão inofensivos.
domingo, 17 de janeiro de 2010
Como se antigamente
Agarrou na pá e atirou mais uma pazada de carvão para a caldeira da locomotiva, numa cadência interminável. Amaldiçoou mais uma vez o dia em que nasceu. Oh, ainda se pudesse ter aguardado umas gerações e nascer lá mais para o futuro, talvez lhe calhasse a era do TGV. Mas ali, naquele emprego sujo e duro, todos os males aconteciam, todas as doenças se apanhavam. Até uma lombriga o andava a incomodar há uns dias. Atravessando os carris, passou para o outro lado da linha, onde havia uma retrete. Estava ocupada e, pelo fedor, ia demorar. Arreliado, ficou por ali a gesticular, cheio de preguiça, tão mandrião que nem se lembrou de ir até ao fundo da vereda, onde poderia aliviar-se dos seus embaraços.