segunda-feira, 18 de maio de 2009

Correntes quebradas


Em escrita automática (processo de escrita contínua, sem interrupções, emendas ou retrocessos), um texto iniciado por: "A corrente do relógio partiu-se".

A corrente do relógio partiu-se. Ele sabia que se tratava de um sinal. Olhou em volta. Não encontrou o tempo. Decidiu avançar assim mesmo. Sabia que não havia volta. Algures haveria de encontrar outro relógio. O pior era o tempo, o tempo que não voltava. Sabia que o tempo não avançava, não envelhecia, quem envelhecia era ele. O tempo é sempre igual, as estações sucedem-se, o Outono precede o Inverno e outro tanto acontece com a Primavera e o Verão. Quem envelhecia era ele, esmagado por aquele tempo, por aquele relógio e agora até por aquela corrente que se partira. Fugia-lhe o tempo.

Seguiu em frente. Em algum ponto do caminho descobriria uma relojoaria, compraria outro relógio, compraria outra corrente, talvez encontrasse outro eu, talvez pudesse ser outra pessoa, com outro relógio no bolso se encontrasse outra corrente, ou com outro relógio no pulso, se isso não acontecesse. Mas sabia que não podia comprar o tempo.
.

sexta-feira, 15 de maio de 2009

Nas minhas mãos


Em escrita automática (processo de escrita contínua, sem interrupções, emendas ou retrocessos), um texto iniciado por: “Depois do que sucedeu, lavei meticulosamente as mãos”.

Depois do que sucedeu, lavei meticulosamente as mãos. Não podia mais com aquela sujidade. Não sabia de onde me vinha aquele nojo. Mas era nojo. Estava lá tudo. Enquanto lavava as mãos, vinham-me à memória os detalhes. A faca, o momento de cortar o pescoço, o sangue. O pior de tudo era o sangue, aqueles esguichos na minha direcção. Nem o cuidado de me ter prevenido com um enorme avental me libertou daquele nojo.
Agora, nada, nada, nem as súplicas da minha avó por um arroz de cabidela, me convenceria a voltar a matar uma galinha.
.

domingo, 3 de maio de 2009

Feitiçarias


A actividade teve início com a distribuição de uma tangerina e uma bolacha pelo grupo. Fomos convidados a saboreá-los com o objectivo de escrever um texto baseado na seguinte situação:
Um casal dirige-se ao consultório de uma vidente e pede ajuda para resolver um problema. Ela, interrompendo-os, diz: “Não, não me contem. Eu vou descobrir o vosso problema e resolvê-lo. Para isso, só preciso de comer uma bolacha desta caixa e também uma tangerina. A bolacha será de um de vós e a tangerina o outro, e assim, eu vou descobrir o vosso problema”

Impressões sobre os “petiscos”:
Tangerina: Ligeiramente ácida a princípio, revelou-se afinal muito doce. Comia-se e apetecia mais. No final, obrigou a uma saída da sala de aula, para lavar as mãos antes de começar a escrever.
Bolacha: com uma deliciosa cobertura de chocolate, o seu interior era… uma desilusão.

Texto:
- Não, não falem, não respirem! Dêem-me tempo. Deixem-me provar esta bolacha, deixem-me provar esta tangerina.
Sim, já percebi qual é o vosso problema e já sei como resolvê-lo.
Paulina, tu és esta tangerina. Estás toda aqui. Estás um pouco escondida e, por isso, é preciso descascar-te. A princípio pareces ser um pouco ácida, mas depois… quando começamos a saborear-te, vemos que és muito doce e isso engana-nos. Porque tu impregnas-te nas nossas mãos e deixas marcas que é preciso lavar. E é nisso que tu és boa: lavas sempre daí as tuas mãos. Não se pode confiar em ti. E o Serafim já percebeu isso.
Quanto a ti, Serafim, o teu problema é o inverso: olhamos para ti e és apetitoso. Essa camada de chocolate que te cobre a bolacha, esse charme que te encobre a pele, apetece. Apetece provar, dar uma dentada. Foi o que fez a Paulina. Mas depois, quando damos a primeira dentada e chegamos ao teu interior… vem a decepção. Esse teu interior é salobro, pobre. Não sabe a nada. E a Paulina já te deve ter experimentado, porque também ela já percebeu quem tu és.
E agora tirem esses ares de embasbacados da minha frente, tenho outros clientes ali na sala à minha espera e preciso comer mais bolachas e mais tangerinas. Sim, não façam essas caras, é o que faço para ganhar a vidinha.
Quanto a vós, o vosso problema está identificado e é fácil de resolver: diferenças irreconciliáveis de feitios. Vocês não podem ficar juntos. Não se esqueçam de passar na recepção, para pagar a consulta e também na igreja, para desmarcarem o casamento.
....