sexta-feira, 30 de outubro de 2009

Porque corres?

Mote: um texto com as palavras: gavião; passe-vite; hortelã; triciclo; cobertor
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Lá vai Luísa a correr. Corre Luísa, corre, ainda tanto p’ra cumprir hoje! Esperam-te os filhos no infantário, saíste à pressa do escritório, não podes atrasar-te, telefonou-te o teu marido, tens que ir buscá-los outra vez, depois o supermercado, os trabalhos de casa, um salto a casa da tua idosa sogra, “precisa de alguma coisa, minha mãe”?
Corre, Luísa, corre, não pares para respirar, olha o jantar, espera-te a família, tens tudo pronto? Assaste ontem a carne no forno, temperada com hortelã, põe agora a panela ao lume, coze as batatas, pega no passe-vite, um bocado de manteiga e leite e já tens o puré feito, olha o mais pequeno, não come nada que se veja, mais uma noite de barriga vazia, dá-lhe papa antes de dormir.
Corre, Luísa, corre a deitar os teus filhos, os dentes já lavados, um beijo no pai, olha o cobertor a cair, aconchega-lhes o cobertor, ou vão ter frio toda a noite, conta-lhes uma história, apaga a luz, que já dormem, sai do quarto, cuidado, não tropeces no triciclo que o do meio não arrumou, não faças barulho.
Vai, Luísa, vai, o teu marido precisa de ti, cuida que nada lhe falte, entretém-se com as colecções, deixou cair um selo raro, tem um gavião, apanha-o Luísa, ajuda o teu marido, faz-lhe companhia, olha a televisão, estás cansada, cuidado não bocejes, vai cuidar que o aborreces, esse silêncio vai pesar, vai mas é deitar-te, um beijo rápido e cais na cama, porque amanhã, Luísa… amanhã tudo outra vez, filhos, infantário, trabalho, jantar, marido, cobertor, triciclo, hortelã, passe-vite, gavião

Mote de: Nuno
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sexta-feira, 23 de outubro de 2009

Um frio na alma


Mote: escrever um texto que expresse o conceito de «frio»

Era Janeiro. Nevava lá fora.
Pascoal não teve dúvidas quando entrou no quarto gelado. Tinha hesitado muito até tomar a decisão, mas agora sentia-se firme.
Estava magoado. Deixara-se surpreender pela cilada de Clementina na única ocasião em que lhe tinha pedido apoio. Tinha sido a gota de água. A poucos dias da inauguração, o Hotel do Gelo, o seu sonho, ruíra por causa dela.
Um hotel todo em gelo… paredes, móveis, lustres, soberbas obras de artes esculpidas em gelo, tudo exibido ao longo de magníficos salões… Um autentico castelo de cristal. Obtido a partir de largas toneladas de neve e gelo, harmoniosamente combinados, seria a admiração de todos os que dele viessem a ter conhecimento. Pascoal fantasiara com detalhe o estrondoso acontecimento que seria a inauguração: glória, poder e sucesso, holofotes acesos em elogios ao seu arrojo. Por todo o lado, convidados deslumbrados com a sua iniciativa.
Tudo. Agora nada. Por causa dela.
Clementina, arremessando-lhe toda a crueldade que ele tão bem conhecia, arrasara todo o projecto. A venda das acções, que ela lhe prometera, e que ele havia descoberto terem sido cedidas ao seu rival Isolino, desvanecera definitivamente a concretização do seu sonho. A discussão que se seguira tinha sido especialmente dura, com ela a acusá-lo de falta de originalidade e de visão de longo prazo, já que o aquecimento global deitaria por terra todo o investimento. “Por terra, não” - acrescentara cinicamente, “por água abaixo”.
A ideia não era nova, ele bem o sabia, mas ali, na Antárctida, tinha todas as condições para ser um sucesso. E o outro argumento também não convencia, já que aquele era um projecto sazonal, que teria que ser reconstruído no início de cada estação fria.
Era Janeiro. Nevava lá fora.
Entrou no quarto. Ela dormia, tão serena que poderíamos pensar que se julgava inocente. Pascoal colocou uma asa sobre a cabeça dela, tapando-lhe o bico, e pressionou com força até deixar de a ouvir respirar, até ter a certeza de que ela nunca mais poderia prejudicá-lo.
Lá fora, era Janeiro e continuava a nevar.
A nossa história poderia ser uma banal crónica de crime e vingança, não fosse sabermos que Pascoal e Clementina são dois pinguins.
Mote de: Nuno
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