terça-feira, 25 de agosto de 2009

Sabes inventar palavras?

Mote: Escrever um texto com as seguintes palavras inventadas: sidrembo; xinovita; bacomela; mergonha; alávica.

Viu-a encará-la com um desprezo que não disfarçou, mas isso não a fez fraquejar. Era assim desde sempre: não se toleravam, mas sabia que desafiá-la poderia revelar-se pouco inteligente.
- Menina Clarinha, venha ao quadro.
Não era a primeira vez que se confrontavam e reconhecia que nem sempre a vitória fora sua, mas o lápis da sorte que trazia hoje consigo fê-la sentir-se confiante. Sabia que podia desconcertá-la.
Avançou com determinação e segurou no giz. Empinou o nariz e esperou, olhos nos olhos com a professora.
- Transcreva daqui uma frase, que seguidamente deverá analisar.
A professora entregou-lhe a obra que tinham vindo a estudar durante toda a semana. Tinha chegado o momento. Abriu o livro casualmente e, tão lentamente quanto pôde, começou a desenhar palavras numa caligrafia perfeita.
“Bacomela sidrembou sem qualquer mergonha, pois sentia-se alávica com toda aquela xinovita”
Quando terminou de escrever, olhou de soslaio para a D. Palmira. Não havia lugar à dúvida: tinha deixado a velha senhora atónita. Interiormente, festejou o seu triunfo. A balbuciar, a professora conseguiu, ainda assim, pronunciar:
- Como classifica …hã… Bacomela?
- É o sujeito da frase.
- E… sidrembou?
- Trata-se do pretérito perfeito do verbo sidrembo na 3ª pessoa do singular. Posso conjugá-lo, se pretender: eu sidrembo, tu sidrembras, ele…
D. Palmira não parecia estar a sentir-se bem. A sua voz soou tremida:
- Não, não, chega. Deixe estar. Tem a certeza que retirou essa frase do livro?
Clarinha fez o ar mais estupefacto que conseguiu.
- Claro que sim. Posso continuar a minha análise?
- Continue… continue… Não! Espere. Diga-me só onde encontrou essas palavras… mergonha… alávica… xinovita.
Ela manteve o ar inocente.
- Essa agora! Estão no texto. Como bem sabe, mergonha é um advérbio, alávica um adjectivo e xinovita um substantivo.
Deixando toda a turma em êxtase, D. Palmira saiu a correr da sala e continuou pelo corredor fora a gritar:
- Socorro! Tragam-me um dicionário de neologismos!

Mote de: Nuno
.

segunda-feira, 10 de agosto de 2009

De que tens medo?


Mote: escrever um texto que contenha a expressão «Medo? Não. Alguma inquietude, mas mesmo assim controlada»

São tantos os medos que nos acompanham ao longo do caminho que nos perdemos por não saber dizê-los.
Há o medo de não ser capaz. O medo de falar, talvez por medo de me ouvir. O medo das coisas que nos fazem sentir bem, como se delas não fossemos dignos.
O medo de não conseguir escrever um livro. O medo de não ser criativo. Medo de não parecer bem. Medo dos pequenos ridículos.
Há medos inconscientes, outros que tão bem conhecemos. Medos profundos, outros superficiais, outros irracionais.
Há medos de aranhas, de ratos, de alturas, da dor, do escuro, de andar de avião, da cadeira do dentista, de engordar, de multidões. Ansiedades ou fobias. De objectos, animais, lugares, situações.
Medo da solidão. Do desconhecido. Medo de ter medo.
O medo de partir, mesmo quando há não vontade de ficar.
O medo da verdade, por medo de sofrer, de chorar e, o pior de todos, o medo de sorrir.
Há o medo da vida, o medo de mim, o medo das coisas que me assustam. Medo de enfrentar.
O medo de magoar e ser magoado. Medo de amar. De não ser amado.
O medo da primeira vez (de qualquer primeira vez, mas há umas que custam mais do que outras). O medo do fim vida (ou de qualquer fim).
No limite, todos os medos caminham na mesma direcção: o medo da morte, que faz ter medo da vida. Ou, pelo menos, não deixa que a vida seja vivida com vida.
Quanto a vós, poderão pensar que também eu senti medo de caneta em punho para vos escrever estas linhas. Pois a todos responderei: Medo? Não. Alguma inquietude, mas mesmo assim controlada.

Mote de: Nuno
.

quarta-feira, 5 de agosto de 2009

(A)rriscado


Mote: escrever um texto às riscas (não interessa como, a única regra é causar no receptor a sensação de riscas).

Há um frio cortante por toda a casa. Tento uns rabiscos no papel, mas as mãos geladas deixam-me desconfortável e impedem-me de escrever. Ouço a chuva lá fora e corro para a janela. Afasto as ripas dos estores e olho a linha do horizonte. Nuvens pesadas entornam uma generosa queda de água em forma de grossas riscas que desabam num corrupio de movimentos verticais.
Arrisco e saio para a rua. A água escorre pela estrada numa correria louca pelo imenso traçado desenhado no asfalto. Há anos que sigo à risca os sábios conselhos da minha avó e evito a humidade para não pôr em risco a minha frágil saúde, mas hoje apetece-me esta chuva. Deixo as linhas formadas pela água escorrerem-me pelas roupas finas coladas ao corpo. Troco o risco de uma gripe pelo prazer de uma carícia molhada.
O vento sopra forte e trás consigo uma pedra que voa em direcção a um carro ali estacionado, riscando-lhe o vidro. A montra de uma loja fica riscada quando um ciclista desgovernado falha o indispensável equilíbrio.
Volto para casa, viro a cabeça a pino e com o pente vou moldando riscos nos cabelos encharcados, devolvendo-lhes a ordem. Passo pela sala. Na televisão, um programa sobre a vida animal revela-me segredos sobre o mundo das zebras. Sigo para a cozinha, quero um café quentinho para me aquecer, abro o armário e tiro uma chávena do meu novo serviço às riscas amarelas. Reparo no esparguete do almoço esquecido em cima da mesa, o frio deixou-me sem fome.
Volto à sala, e, num impulso, desato a riscar tudo o que escrevi. Depois, escrevo mais uma página do meu novo livro “A vida é um risco”.

Mote de: Nuno
.