quinta-feira, 24 de abril de 2008

Reflector de verdades



12 objectos. As histórias que eles nos contam. Uma frase por cada. Um texto
Frases:
- Cabeças vermelhas que se incendeiam ao som e ao ritmo do tango numa colorida rua Argentina
- 5ª feira anda à roda!
- O rato roeu a rolha do rei da Rússia;
- Cortiça ;
- Vontades reprimidas de viagens por cumprir;
- A chave para o teu coração;
- Menino de luz;
- Fita colorida para enlaçar cabelos de menina;
- Um trabalho que já não é meu;
- Reflector de verdades;
- Sem valor;
- Sonho de tantos

Objecto escolhido: um espelho

Entrou naquela viela escura e suja sem ter muito bem noção do tempo ou do espaço. Do bolso saía-lhe um pequeno espelho sem história. Reflector de verdades. Não sabia como tinha ido ali parar. Olhou para ele. Olhou-se nele. O que via não o satisfazia. Velho, de barba por fazer. Era assim que se sentia. Velho. Palavra tão pesada. Quis crer que era engano, mas o objecto que lhe pulava do bolso não dava azo a enganos. Olhou-se de vários ângulos em busca de outra perspectiva, sem saber se buscava outra imagem se outra vida.
De onde chegava agora trazia todas as certezas quanto à condição que o espelho tão bem reflectia. Para onde ia não sabia. Revirou o espelho, mas ele foi implacável. Velho. De barba por fazer. Barba branca, cabelos brancos nas têmporas. Riu-se. Estou tão Velho. A cada nova gargalhada ouvia o eco: Velho, Velho. Respondeu-lhe: de barbas brancas.
Tentou concentrar-se. Onde teria apanhado o espelho? Tê-lo-ia agarrado pensando ser algo valioso? Não, não se lembrava de tal. Sabia bem a resposta mas não queria encará-la. Sabia bem que, de onde viera, era o único objecto que podia trazer consigo porque era o único que lhe poderia dizer a verdade. Aquela verdade inoportuna e incómoda: estava Velho e tinha que dar um rumo à sua vida ainda antes de resolver o problema das barbas brancas. Sabia que tinha agarrado aquele espelho porque ele não lhe mentiria e o obrigaria a dar o passo possível, fuga para a frente, caminho seguinte que deixaria para trás o lugar de onde viera. Sabia que aquele espelho tinha vindo com ele porque a sua decisão estava tomada: amanhã mesmo, passada a noite e saído daquela viela escura e suja, agarraria num outro objecto, um qualquer que o libertasse daquelas barbas brancas de muitos, muitos pêlos que lhe gritavam um por um: Velho, Velho, livra-te de nós!
Sentia-se Velho. Palavra tão pesada!

1 comentário:

Marco Torre disse...

....hmmm gosto do desenho de esher que escolheste para este magnifico texto.... muito bom!!
beijinhos